Dois livros publicados este ano perfazerm o ponto da situação hermenêutica sobre a obra de José Saramago. Refiromo-nos a José Saramago, de Ana Paula Arnaut, primeiro livro de uma colecção dirigida por Carlos Reis e José Saramago: a consistência dos sonhos, de Fernando Gómez Aguilera, para-catálogo da exposição com o mesmo nome presente no Palácio da Ajuda, em Lisboa.
O primeiro, de Ana Paula Arnaut, dotado de uma divisão original, desdobrado entre a análise temática e o testemunho do próprio Saramago e dos seus interprétes, tem como leitura absolutamente obrigatória uma "Apresentação da autora, que se estatuirá doravante como guião da leitura da obra saramaguiana, como se estatuiu, para as décadas 80 e 90, o livro O essencial sobre José Saramago, de Maria Alzira Seixo. Nesse sentido, Ana Paula Arnaut já apresenta a obra de Saramago dividida em dois "ciclos" (pp.40/42), sintetiza a posição singular do autor no campo do romance histórico (pp.30 e ss), expõe a tese original do estutuo literário do teatro em Saramago com "subgênero do drama histórico" (p.23), evidencia a influência da narrativa oitocentista na escrita do primeiro romance de Saramago, Terra do pecado (pp.15-16), enquadra a actividade de cronista do autor como testemunho genuíno da sua visão político-social (pp.17-18) e, seguindo uma perspectiva antiga de Carlos Reis, defende que "o verdadeiro manancial, ou manual, dos veios temáticos ideológicos - mas principalmente formais - do universo ficcional da pessoa e escritor José Saramago se encontra reunido no extraordinário romance Manual de pintura e caligafia, de 1977 (p.18). Numa síntese geral, expressão da sua tese acadêmica (Post-Modernismo no romance português contemporâneo, 2002), Ana Paula Arnaut integra a totalidade da obra de Saramago numa visão post-moderna do romance, subversora das categorias clássicas da narrativa.
Curiosamente no ano em que se comemora os 400 anos de Padre António Vieira seria hermeneuticamente útil que se aclarassem algumas invariantes formais entre o pregador jesuíta e José Saramago, revelando porventura um fundo recorrente da cultura portuguesa: 1) Ambos desenham a sua obra em função de uma utopia futura (o Quinto Império cristão para Vieira; o comunismo para Saramago); 2) Ambos ousam testemunharem nas obras uma fortíssima intervenção social (Vieira na defesa dos escravos negros, dos ínidos tupi e, na Europa, na defesa dos cristãos-novos e judeus; Saramago na dos trabalhadores oprimidos e perseguidos pelo poder político; 3) Ambos praticam, cada um com a sua singularidade, um estilo barroco dotado de algumas semelhanças; 4) Ambos por vezes se encontram em dissonância com a força ideológica que os representa (por duas vezes Vieira foi ameaçado de expulsão da Companhia de Jesus: Saramago por vezes em conflito com a visão política oficial do partido Comunista Português).
[REAL, Miguel. Resenha José Saramago: O ponto da situação (fragmento). In Jornal de Letras, 13 de agosto de 2008.]