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Don Giovanni ou o dissoluto absolvido
Teatro, 2005



Edição brasileira de Don Giovanni ou o Dissoluto absolvido
Capa de Hélio de Almeida sobre relevo de Arthur Luiz Piza























Em Don Giovanni ou o dissoluto absolvido, José Saramago retorna ao teatro, gênero que não revisitava desde In Nomine Dei, de 1993. E essa volta acontece em grande estilo, já que o escritor português decidiu recontar a seu modo um dos mais importantes e conhecidos enredos da história da literatura, o de Don Juan, o implacável sedutor. Trata-se de um personagem presente na obra de inúmeros autores, como Tirso de Molina, Molière, Hoffman, Byron e Pushkin. O texto é a base para o libreto de uma ópera do italiano Azio Corghi, montada no Teatro alla Scala, em Milão. A referência direta de Saramago é o Don Giovanni ou O dissoluto punido, de Mozart, que estreou em Praga em 1787, com regência do próprio compositor.

A principal modificação inserida por Saramago no enredo é o desfecho, como indica a troca de "punido" por "absolvido" no título da obra. De modo semelhante à versão tradicional, também aqui a estátua do Comendador, que fora morto por Don Giovanni, deixa o cemitério e aparece para jantar na casa do mulherengo em busca de reparação da honra ofendida da filha, Dona Ana. Só que desta vez suas tentativas de vingança não funcionam como ele esperava. Dona Elvira, uma das 2065 mulheres da lista de conquistas de Don Giovanni, ainda ensaia outro artifício para apanhá-lo depois de ver suas tentativas de reaproximação falharem. O truque, contudo, também não atinge o resultado planejado.

Nesta peça, Saramago continua seu projeto literário de desestabilizar lugares-comuns e mostrar que nem tudo é o que parece ser. Nela, o seu alvo mais evidente é o da noção de pecado - ou melhor, dos atos humanos considerados pecaminosos. É por isso que o protagonista afirma: "A terra é toda ela um sepulcrário, é mais a gente que se encontra debaixo do chão que aquela que em cima dele ainda se agita, trabalha, come, dorme e fornica. Parece que os anos que viveste não te ensinaram muito, estátua. A morte dos malvados não é para o inferno que se abre, mas para a impunidade. Ninguém poderá ferir-te nem ofender-te se já estás morto".

[texto da orelha da edição brasileira, publicada pela Companhia das Letras, 2005]

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Don Giovanni ou o dissoluto absolvido, de José Saramago

por Rita Bueno Maia

O mito do Dom Juan é assim, assalta-nos em cada esquina. Na introdução à obra que aqui resenhamos, José Saramago narra como no momento em que pôde pela primeira vez conhecer as cores de Praga, cidade há tanto sonhada, ao passar pelo Ständetheater confessou: “nada mais poderia interessar-me que o Don Giovanni”.

O provérbio epígrafe a que Saramago já nos habituou (e a Caminho a procurá-lo de imediato no fundo amarelo da parte de trás do volume) dita: “Nem tudo é o que parece”. E, de facto, uma das cartas reproduzidas no posfácio prova a intenção inicial de Saramago: “uma abordagem que, sem voltar completamente as costas às expectativas «legítimas» do espectador que conhece a história, seja capaz de abanar o déjà vu”.

A peça de Saramago é uma paródia em que se sente todo o seu punho de romancista na presença do duplo, na auto-reflexividade pessoal, social e literária, na laicização do divino, na des-sacralização total ligada(angustiosamente?) a algo muito ibérico: a omnipresença da memória da Inquisição.

No entanto, para que resulte a paródia, tem de se produzir no leitor um reconhecimento das aparências, sendo estas depois frustradas e desconstruídas. A peça oferece ao reencontro todos os elementos donjuanescos: Dona Ana e Elvira, a estátua do Comendador, o criado e o catálogo das conquistas, cena, inicial nesta peça, tornada fulcral desde Mozart, subtexto imediato e assumido. Mas ao leitor português do “seu Nobel”, estará vedado, quiçá, o significado da revisitação a todos estes tópicos; procurará ele a versão espanhola, entrada na linguagem comum com a fonética original —Dom Juan—, do seu próprio tipo “marialva”.

O mito do Dom Giovanni, este, é feito de livros e música. “Fica por decidir – sentencia Saramago na introdução – se o autor do texto também virá a beneficiar de uma absolvição, ele que se atreveu a criar o seu próprio Giovanni, depois de Tirso de Molina, (…) Goldoni, Lorenzo da Ponte, Byron, Espronceda, Hoffmann, Zorilla (…) e não sei quantos mais”.

Também este livro, estabelecendo o pacto melindroso entre o leitor e um texto escrito para o palco e para a ópera, propõe uma leitura em progresso e quase empilhadora desta peça. Dividido em três partes, o avantpropos, em primeira pessoa expõe as razões que dissuadiam o autor de assumir esta empresa; a peça, em entremeio, conta com um prólogo e seis cenas; e, finalmente, o texto traduzido por Mário Vieira de Carvalho: “Génese de um libreto” de Graziella Seminara. A inclusão desta terceira parte é-nos justificada pelo editor na nota que abre o livro: a vontade de dar a conhecer a história da feitura desta peça desde a sua encomenda.

O último texto procura suprir o veto à audição a que está sujeito o leitor, informando-o das opções tomadas por Azio Corghi, compositor a quem foi encomendada a ópera – Il Dissoluto Assolto – pelo Teatro alla Scala. Também Corghi, à semelhança de Saramago, pressupõe (procura?) um espectador cultivado, capaz de captar ora as ressonâncias da ária “da calúnia” de Don Basilio do Barbeiro de Sevilha ora a alegria rústica dos cantares de Emilia Romagna. Na nossa opinião, é nesta construção em mise-en-abyme que a obra editada pela Caminho adquire o seu mais elevado grau de coerência.

O objecto livro é uma presença constante em O Dissoluto Absolvido dotado de poderes perniciosos que justificarão a sua destruição em auto-da-fé; as personagens falam como tal, desnudando a um tempo o pacto ficcional e a honra do teatro do século de ouro, anacrónica para idade da descoberta dos satélites e dos dinossauros.

Este Don Giovanni desconstrói a hipocrisia e os pseudo-moralismos baseados apenas na manutenção da imagem exterior. Dom Juan, sem o mito, sem todas as linhas que escreveram e desenharam a sua personagem, perde a identidade.

O leitor assistindo, não pouco intrusivamente, ao diálogo entre compositor e escritor, à sua mútua amizade e admiração, assim como ao desencontro de objectivos e interpretações, desmistifica o criador. A ópera vai sendo construída com fragmentos de outras óperas, fragmentos de várias apropriações textuais do mito e, mesmo, fragmentos de textos poéticos de Saramago seleccionados por Corghi.

O trabalho de escrita, apresentado como artesanal, sobrevaloriza o receptor, capaz, este, de descodificar a razão que subjaz o bilinguismo de algumas cenas ou, num só momento, toda a cultura livresca, teatral e musical do grande projecto Don Giovanni ou o Dissoluto Absolvido.

[Texto publicado em Líquidis. Revista d'Estudis Literaris Ibèrics, n.3, 2009]

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Obras novas, modos de programar e de atenção

por Augusto M. Seabra


A situação de José Saramago "na ópera" é singular: um escritor reconhecido, galardoado com o Prémio Nobel, que vem tendo uma colaboração regular com um compositor, Azio Corghi, assinalada já de diferentes modos em três óperas, "Blimunda", "Divara" e agora "Il Dissoluto Assolto" - além de colaborações não cénicas. Comece-se pois por assinalar o facto, suficientemente singular repito, para afirmar também que ele não pode escamotear uma evidência cada vez mais saliente e uma interrogação, a saber: perante a absoluta menoridade composicional de Corghi são os textos de Saramago razão suficiente para o estatuto de privilégio que as obras da dupla têm tido na programação do São Carlos, teatro nacional e único de ópera?

O projecto que originalmente reunia apenas "Sancta Susanna" de Hindemith e "Il Dissoluto Assolto" de Corghi (é canónico as óperas serem referenciadas pela autoria de compositor, e só Saramago tem o hábito de se referir a cada uma delas como "a minha ópera"), na altura sem "Erwartung" de Schoenberg, foi gizado como uma co-produção entre o Scala de Milão e o São Carlos, situação prestigiante para o teatro português - e factor que também se deve assinalar. Como se sabe, a estreia deveria ter ocorrido há um ano em Milão, mas tendo-se declarado a crise que acabou por conduzir ao fim da autocrática direcção de Riccardo Muti, esta apresentação agora em Lisboa é a estreia mundial da obra.

Programar conjuntamente "Sancta Susanna" e "Il Dissoluto" é uma inteligente proposta de programação, que aliás leva inevitavelmente a invocar uma situação que recentes polémicas colocaram de novo na ordem do dia: a da "blasfémia". O entrosamento de religião e sexo na obra de Hindemith fizeram dela o caso paradigmático de ópera tida por "blasfema", que aliás tem toda uma história de protestos por parte de sectores católicos. E evidentemente há algo de "blasfemo" no desafio à Estátua de Comendador de Don Giovanni, "il dissoluto", o arquétipo que Saramago e Corghi retomaram.

A inserção entretanto do extraordinário monodrama que é "Erwartung" provocou de facto uma alteração, que pode ser sintetizada nos seguintes termos: em vez de um espectáculo duplo, "Sancta Susanna/Il Dissoluto", houve um duplo espectáculo, o díptico "Sancta Susanna"/"Erwartung" e depois o tal "Dissoluto". Isso mesmo é patente na construção do espectáculo, com um mesmo cenário para as óperas de Hindemith e Schoenberg, só com pausa - e não intervalo - entre elas, com as mudanças de cena feitas por freiras, comparsas na primeira das óperas, enquanto "Il Dissoluto" é de todo diferente.

"Susanna" e "Erwartung" descendem dos abismos libidinais da "Salomé" de Strauss (foi há um século, precisamente) e são contemporâneas de Freud e da importância que para ele tiveram os estudos de Charcot sobre a histeria. Tivesse aliás a aproximação/contraposição de Hindemith e Schoenberg sido pensada de princípio, a complementaridade mais se estabeleceria antes com outra das pequenas óperas do primeiro, "Mörder, Hoffnung der Frauen/Assassinato, Esperança das Mulheres", com texto de Oskar Kokoscha. Em qualquer caso, e mesmo que se possa apontar à direcção musical de Marko Letonja e à encenação de Andrea de Rosa uma preferência pela funcionalidade discreta, ainda que operativa, por demais contida face ao potencial dramático das obras, de "Erwartung" sobretudo, o díptico é notável, com a magnífica presença de Brigitte Pinter, Klementina numa ópera, a Mulher só na outra. Maior é então a queda com "Il Dissoluto".

Eu até entendo que há aspectos interessantes no texto de Saramago, que a um tempo remetem para o fantasma da impotência do sedutor e toda uma tradição de leitura do mito, e a outro são muitos característicos do autor, assinalando relações com "História do Cerco de Lisboa", "Todos os Nomes" e mesmo "O Homem Duplicado" (a relação Giovanni/Leporello, a inscrição dos nomes no catálogo). Mas a concreta obra que nos é dada a ouvir é o cúmulo do "pastiche" anódino.

Corghi é hoje um compositor em que a famosa editora Ricordi aposta forte, enquanto por vezes até é difícil encontrar partituras e materiais de outros autores que a casa em tempos publicou. A questão fundamental é todavia a de ser inaceitável que este compositor passe por minimamente representativo do que mais saliente existe no teatro musical contemporâneo. E a questão redobra-se então de uma outra, que tem também de ser claramente inscrita: por via de Saramago, as óperas de Corghi ganharam uma espécie de estatuto de obrigatoriedade num São Carlos, teatro nacional de ópera, de que permanecem ausentes autores maiores da contemporaneidade, como desde logo Nono e Berio - ou talvez deva mesmo dizer Calvino/Berio.

E com esta situação decorre também uma amplificação da notoriedade operada pelos "media", até com nótulas de recensão destituídas de qualquer pensamento crítico, enquanto outros factos importantes pouco são assinalados ou são-o sem questionamento das suas condições de apresentação. É-me inaceitável que o destaque à mediocridade anódina do "Dissoluto" de Saramago/Corghi vá de par com a falta de cuidado na estreia de "Graffiti (just forms)" de Pinho Vargas e a inexistência de atenção crítica às notáveis "Histórias Fantásticas" de Luís Tinoco.

Tenho uma posição duplamente reservada perante "Graffiti", estreada pela Orquestra Sinfónica Portuguesa, também sob a direcção de Marko Letonja, no passado dia 4 no CCB. No meu conhecimento continuado do trajecto do compositor não me é claro que a presente obra, num mesmo tipo de atitude expressiva/reflexiva da admirável "Six Portraits of Pain" estreada na inauguração da Casa da Música, consiga todavia uma equiparável articulação de desenho geral e individualização dos sete "Graffiti", o que aliás de algum modo está enunciado no próprio título. Mas se daí se pode deduzir também uma situação de precariedade, já não é aceitável que uma obra encomendada pelo São Carlos, pelos poderes públicos, para além de correr o sério risco de se inscrever na cultura do desperdício reinante e no caso a remissão a uma única apresentação, para mais o seja com menor cuidado, certamente derivado de poucos ensaios e empenho: a falta de trabalho na sonoridade das cordas ou de definição de planos levou ao paroxismo de termos ouvido sim aproximações, quais ""sketches" de "graffiti""!

É sabido que esta precariedade de obras contemporâneas, encomendadas mas depois na maioria das vezes objecto apenas da primeira audição, é uma situação genérica, analisada no famoso estudo de Pierre-Michel Menger, "Le Paradoxe du Musicien - Le Compositeur, le Mélomane et L"État dans la Societé Contemporaine". Mas o cidadão, e o cidadão melómano, tem o direito de interrogar publicamente se o São Carlos supõe que anda a fazer obrigações públicas repetindo situações destas. Acaso serão programadas de novo, por exemplo, as obras constantes da proposta Quatro Postais de Compositores Portugueses?

Por falar nessas, saudei na altura particularmente "Zapping" de Luís Tinoco, brilhante objecto paródico, aludindo directamente às outras duas obras que constavam do mesmo programa, as Sinfonias nº102 de Haydn e nº39 de Mozart. Mas para além desse estatuto eminentemente circunstancial, "Zapping" foi afinal uma obra que deixou marcas. Com "Sundance Sequence", é uma das peças de Tinoco que ocorreu ao ouvir agora as brilhantes "Histórias Fantásticas" sobre textos de Terry Jones (dos Monthy Python), encomenda da Orquestra Metropolitana de Lisboa, em apresentação conjunta com o São Luiz.

O sentido da narrativa e da direccionalidade musical, a pulsão, o brilhantismo da invenção tímbrica fazem de "Histórias Fantásticas" um notável sucesso. E deu gozo, que é mesmo o termo, ver o comprometimento do narrador João Reis ou dos músicos tão bem dirigidos por Cesário Costa, com grande destaque para o concertino Xuan Du.

Ao lado um do outro, aprendesse o São Carlos, teatro nacional, alguma coisa com os cuidados postos nesta apresentação, fazendo justiça à obra, pelo São Luiz, teatro municipal. Coisas..."

[Texto publicado no suplemento Mil Folhas, do Jornal Público, 25 de março de 2006]