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RELATO COMPLETO DE UM ENCONTRO COM SARAMAGO : “PARA QUE TUDO ISSO? VOU MORRER SEM ENCONTRAR A RESPOSTA. CREIO QUE NINGUÉM NUNCA ENCONTROU”


A ficha que a gente preenche quando chega a um hotel sempre pergunta qual é a nossa profissão.

Se dependesse de mim, eu escreveria: “agente provocador”.

Imagino a cena de um filme B de décima-oitava categoria: o gerente da espelunca - com camiseta branca, barriga estufada e um lápis encaixado atrás da orelha - tiraria o cigarro de palha da boca, cuspiria de lado e me perguntaria, com voz fanhosa e entonação de personagem mal dublado de filme de TV: “Quer fazer o favor de dizer o que diabo significa “agente provocador”? Alguma piadinha de mau gosto, por acaso ? Sinto muito, forasteiro, mas não temos vaga. É melhor você ir andando, se ainda estiver pensando em salvar a própria pele! O último agente provocador que passou por aqui virou banquete para as águias daquela montanha. Get out of here, coiote!”.

Vou. Sem tiroteio, sem cenas de ação, sem pancadaria no saloon, sem cavalos em fuga, o filme B termina sob as vaias da plateia. Não poderia ser de outra maneira.

Mas, como todo filme deve ter uma ponta de verdade, o locutor-que-vos-fala declara que sim, se pudesse, escreveria as palavras “agente provocador” no espaço destinado à profissão. Afinal de contas, que outras coisas úteis um repórter pode fazer na vida, além de cumprir o papel de agente provocador diante dos entrevistados? Poucas. Pouquíssimas.

De vez em quando, a tática da provocação pode dar resultado. Ou seja: pode levar o entrevistado a produzir declarações interessantes.

Dou um exemplo aos senhores jurados. Quando fui entrevistar José Saramago, o escritor que permaneceu fiel ao Partido Comunista Português independentemente das mudanças da paisagem política, comuniquei ao meu demônio-da-guarda: “Vou dar uma cutucada no bicho. Vou insinuar que ele é um dinossauro político. Quero ver o que ele diz”. Meu demônio-da-guarda se limitou a expelir um daqueles suspiros com cheiro de enxofre e a rir uma risada de bruxa de desenho animado, como se dissesse: “Você vai levar uma patada. Quero ver!” (a bem da verdade, diga-se que, tempos depois, o “dinossauro político” e “comunista de carteirinha” Saramago escreveu um artigo criticando pela primeira vez a rigidez de penas impostas pelo regime cubano a dissidentes. A lembrança do encontro com Saramago me veio quando li, neste fim de outubro, a notícia de que o homem acaba de lançar um novo romance – “Caim”, uma espécie de acerto de contas com Deus).

De fato, Saramago reagiu com alguma irritação à nossa provocação. A entrevista estava salva. Num gesto de cortesia, o português laureado com o Nobel de literatura ainda citaria o nome de três escritores brasileiros a quem ele concederia – de bom grado – o prêmio.

***

O senhor é até hoje filiado ao Partido Comunista Português. Não tem medo de ser visto como um animal político em vias de extinção?

(O espírito de porco que quiser irritar o Prêmio Nobel de Literatura José Saramago já sabe o que fazer : basta chamar o homem de dinossauro político. Quando ouve a insinuação político-zoológica, o cordato Saramago imprime um tom incisivo à resposta)

Saramago: “Há muitas coisas em vias de extinção que deveriam preocupá-lo mais : profissões que se acabam, culturas que desaparecem, línguas que perdem sentido porque já não têm ninguém que as fale, um planeta que estamos destruindo. Deixemos lá os dinossauros políticos. Porque acontece uma coisa curiosa : é preciso ter cuidado com a expressão “dinossauro político”. Pode chegar o momento em que, tal como acontece com os dinossauros autênticos, os estudiosos andem à procura dos ossos dos dinossauros políticos, para tentar reconstituí-los tal como eles teriam sido. Talvez um dia se venha a necessitar dos ossos dos dinossauros políticos que nós somos para que se entenda o que acontecia no mundo”.

(Minha tática de agente provocador funcionou : quando se sente confrontado, o dinossauro Saramago reage com um punhado de frases afiadas,o que não deve ser difícil para quem se notabilizou como exímio esgrimista das palavras)

Usa-se no Brasil a expressão “comunista de carteirinha”. O senhor anda com a carteirinha do Partido Comunista Português?

Saramago: “Não ando com ela. Tenho cartões e carteirinhas de várias e várias instituições com quem mantenho relações. Não ando com as carteirinhas de todos. Mas pago a minha cota ao PC”.

O dirigente comunista Álvaro Cunhal entregou ao senhor uma carta que não deveria ser aberta. Que segredo essa esse?

Saramago: “Álvaro Cunhal na verdade escreveu uma carta que nunca li, porque a carta só me seria entregue se ele não tivesse sobrevivido a uma intervenção cirúrgica a que foi submetido na União Soviética. O que sei é que ele escreveu cartas que seriam entregues a vários destinatários se ele não tivesse sobrevivido. Não é o Terceiro Segredo de Fátima : ele próprio me comunicou, depois, ter dito, na carta, que esperava que eu nunca saísse do Partido Comunista Português. Não saí. Não sairei. Em todo caso, a carta nunca me foi entregue”.

Independentemente do apelo que seria feito nessa carta, jamais lhe passou pela cabeça a idéia de largar o Partido Comunista?

Saramago: “Não tenciono efetivamente – para usar a expressão que você usou – “largar” o Partido Comunista, a não ser que ele me largue. Quero dizer : se amanhã o Partido se transformar em outra coisa, como aconteceu com a maioria dos partidos comunistas europeus, posso não reconhecer o Partido a que aderi. Nesse caso,é possível que eu saia. Mas espero que não aconteça”.

Por que é que o Prêmio Nobel de Literatura não gosta de falar de literatura?

Saramago: “…Mas eu nunca disse que não gosto de falar de literatura! O que disse foi que cada vez menos me interessa falar no assunto. Não é que não goste. Se é meu trabalho,como é que não iria gostar? Quando se publica um livro, ou por qualquer outro motivo, ligado ou não ligado a mim, falo de literatura, evidentemente. O que acontece é que considero que os problemas do mundo não se esgotam na literatura. São tão graves e tão importantes que, se tenho a oportunidade, até quando trato de literatura trato de abordá-los. Não é dizer que não gosto de falar de literatura”.

O senhor já disse que o Brasil é um país de luzes e sombras. Aos olhos do mais famoso escritor português de hoje,qual é a grande luz e qual é a grande sombra que o Brasil projeta?

Saramago: “Uma pergunta dessas não é fácil de responder. Países de luzes e sombras de uma maneira ou de outra todos o são. O que digo em relação ao Brasil é que o país poderia ser, pelas riquezas naturais e pelas características do povo, um país em que as luzes predominassem. Não digo que as sombras é que predominam. O que quero dizer é que as sombras poderiam ser menores e menos graves”.

Se o senhor fosse fazer hoje o papel do escrivão Pero Vaz Caminha,quinhentos anos depois, qual seria a primeira frase que escreveria sobre o Brasil?

Saramago: “Depende do lugar onde eu desembarcasse. Se desembarcasse em Copacabana, quando se arrebentaram os esgotos nas praias no Rio de Janeiro, diria ao rei Dom Manuel que aqui não poderia viver ninguém, porque o lugar cheira mal .Se, pelo contrário, desembarcasse numa praia limpa, coberta não de índias despidas, mas de lindas moças quase despidas, diria que aqui é um sítio para viver, uma terra linda. Se, no entanto, começasse a encontrar as favelas, diria : “Mas o que é que se passa aqui ? Eu julgava que os índios viviam de outra maneira!”.

O senhor ainda se sente “como uma Miss Universo”, com a agenda atolada de compromissos depois do Prêmio Nobel?

Saramago: “Fiquei com a sensação de que as agendas de uma Miss Universo e a de um escritor premiado eram bastante parecidas. Mas hoje posso dizer que não se parecem em nada. As obrigações e responsabilidades de uma Miss Universo duram um ano. Haverá, então, outra Miss Universo ,não só com a coroa na cabeça, mas também com o dever de fazer tudo aquilo que a predecessora fez. Mas,no meu caso – eu, que, não sei se feliz ou infelizmente, não pareço em nada com a Miss Universo – as obrigações não cessaram pelo fato de em 1999 Günter Grass ter ganho o Prêmio Nobel.
Diga-se que o Prêmio Nobel não impõe rigorosamente nenhuma obrigação. O sujeito chega lá, recebe o Prêmio e vai para casa. Depende da vontade do escritor o uso que ele fará do tempo – o emprego que fará de suas possibilidades de comunicação, se vai continuar a escrever, se vai ter contatos com os leitores. Como o Prêmio Nobel foi atribuído a um escritor de língua portuguesa, é claro que minhas obrigações e responsabilidades se multiplicaram. Eu entendi que deveria assumi-las”.

Qual é o maior incômodo que um Prêmio Nobel enfrenta, além do fato de ser sempre importunado por jornalistas, como o senhor agora?

Saramago: “Poderia responder que o outro maior incômodo é ser importunado por fotógrafos. Mas não. Incômodo não há nenhum. O que acontece é que se perde a invisibilidade depois que se ganha o Prêmio! É o pior. Evidentemente que é agradável ser reconhecido na rua e em qualquer parte, no aeroporto ou no restaurante. É agradável ver um leitor se aproximar para nos dizer uma palavra amável sobre o que leu. Em todo caso, não é que eu preferisse voltar ao anonimato, mas não há dúvida de que há momentos em que gostaria de me tornar invisível. Só não quero ser ingrato. Todos me tratam com tanto carinho e tanta atenção que qualquer palavra minha nesse sentido poderia parecer de algum modo uma ingratidão. Não é. Apenas que vez em quando sinto a necessidade de recolher-me à minha própria privacidade – que, enfim, já se perdeu”.

A que escritor brasileiro vivo ou morto o senhor concederia o Prêmio Nobel de Literatura?

Saramago: “Não me importaria nada dar a eles o Prêmio, se fosse membro da Academia Sueca: Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto. Sem nenhuma dúvida, eu, membro da Academia Sueca, atribuiria o Prêmio a qualquer um dos três. Mas não foi assim que aconteceu."

O senhor tem uma visão essencialmente pessimista diante do mundo. O pessimismo é bom para a literatura?

Saramago: O pessimista não é bom nem mau para a literatura, mas não tenho uma visão pessimista do mundo. Num momento como esse, pareceria, a mim, um pouco surpreendente que alguém se atrevesse a ser um otimista.Quem, diante do espetáculo oferecido pelo mundo em que vivemos, veja razões para ser otimista é uma pessoa que ou não percebe aquilo que se passa ou então faz de conta que não entende.O melhor, então, é deixarmos de falar em otimistas e pessimistas. Os fatos são os fatos. Não há otimismo ou pessimismo que faça com o que um fato deixe de ser um fato .A interpretação do fato é que pode variar. Mas o fato continua lá. Penso que os fatos desse mundo, dessa vida, desse planeta, dessa sociedade humana são fatos suficientemente sérios e graves.Temos de enfrentá-los não para divagar sobre o otimismo e o pessimismo com que poderíamos considerá-los mas para pelo menos compreendê-los e, se possível, tentar resolvê-los”.

Mas há dois fatos que são aparentemente indiscutíveis no mundo de hoje. Primeiro: o fato “otimista” de que nunca tantas pessoas em todo o mundo viveram tão bem e tiveram acesso a tanta riqueza. O fato “pessimista” é que nunca foi tão grande a diferença entre pobres e ricos. Diante desse quadro, o senhor não tiraria nenhum motivo para enxergar o futuro com algum otimismo?

Saramago: “Não. Se a parte negativa não existisse, então eu diria : uma vez que nunca houve tanta gente vivendo tão bem, pode-se presumir que, no futuro, haja ainda mais gente que vai viver igualmente bem. Mas, como você mesmo acaba de dizer, nunca foi tão grande a diferença entre os que têm e os que não têm .Tudo indica que a diferença vai ampliar-se. Não vem se reduzindo. É evidente que há mais pessoas que estão vivendo bem. Mas também há mais pessoas vivendo mal. Como a população da terra vem se multiplicando, pode-se dizer que, se alguma parte vai se integrar à minoria que vive bem ou razoavelmente bem, muito mais gente vai se incorporar à parcela dos que vivem mal. Além de tudo,não se deve esquecer que há uma tendência para a pauperização das classes médias. Há uma parte mínima da classe média que ascende – e passa para o outro grupo. Mas há uma parte da classe média que vai se aproximando cada vez mais da parte desfavorecida. Volto a dizer que não há pessimismo nem otimismo. Repito : os fatos são os fatos. Noto também que o problema já não é ter ou não ter. O problema – não menos importante – é saber ou não saber. É cada vez maior o número de pessoas que não sabem.Ou sabem mal aquilo que julgam saber. É cada vez menor o grupo de pessoas que detém todo o conhecimento – e de certa forma usa-o para levar o mundo para onde o mundo vai”.

Por que os escritores brasileiros são tão ausentes de Portugal e os escritores de Portugal tão ausentes do Brasil?

Saramago: Pode-se pensar, por exemplo, que leitores de um país não dêem atenção suficiente àquilo que se publica no outro. Pode-se pensar que os temas que tratam os escritores de um país não interessam aos leitores de outro. Mas também se pode pensar que não há um trabalho de fundo para aproximar os dois. É certo que os escritores portugueses vêm aqui. É certo que os escritores brasileiros vão a Portugal. Mas há algo que se passa que não sei explicar. Temos de pensar no seguinte : o leitor também tem suas razões para preferir ou não preferir. Quero crer,no entanto, que seria bom se houvesse um trabalho contínuo de ajuda à edição – evidentemente, é preciso ver até que ponto tal ajuda é economicamente viável .O que é lamentável é que seja assim. Sou uma exceção. Eu próprio me pergunto por quê. Não sou capaz de dar uma explicação. Talvez o que se devesse fazer seria perguntar aos leitores: por que não os interessa a literatura portuguesa? Por que não os interessa a literatura brasileira ? Como é que poderiam se interessar ? Por que os interessa um determinado autor – e não outro ? Fernando Pessoa é muito lido no Brasil. Cem anos depois, Eça de Queiroz também o é. Já Machado de Assis não é tão lido em Portugal como Eça de Queiroz é no Brasil. Faça-se um inquérito para que se chegue a alguma conclusão”.

O primeiro escritor brasileiro com quem o senhor teve contato deixou alguma influência na formação do senhor?

Saramago: “Não posso jurar, porque foi há muitos e muitos anos. Mas o primeiro pode ter sido Raul Pompéia,com esse livro extraordinário que é O Ateneu. Você me pergunta se ficou alguma influência da leitura. Claro que não, porque eu era muito novo.Ainda não pegava essas coisas. O resto foi a aprendizagem. Uso essa palavra propositadamente ,porque o que houve comigo foi a aprendizagem de uma literatura escrita em minha própria língua, mas criada e imaginada em outro lugar – o Brasil ,com tudo o que para mim representou a descoberta não só dessa literatura,mas também das realidades sociais e culturais que estavam por trás dos livros”.

Uma crítica publicada numa revista brasileira sobre o livro A Caverna diz que “a literatura refinada de Saramago dessa vez dá lugar a um sermão”. O senhor acha que a denúncia das mazelas do mundo pode eventualmente comprometer a qualidade literária ?

Saramago: “Tenho que dizer que nunca comento qualquer crítica. É um princípio meu. Eu escrevo o que entendo;o crítico escreve o que entende. Comentários meus sobre uma crítica ninguém encontrará,em toda minha vida”.

Uma velha pergunta : o senhor escreve para fugir da morte ?

Saramago: “Não, porque ninguém foge da morte. É uma ilusão. O que pode acontecer é pensarmos – e devo ter pensado – que se escreve porque não se quer morrer. Parte-se do princípio de que a obra vai ficar ,não se sabe por quanto tempo. Hoje, não sou tão ambicioso. Eu me limito a dizer que escrevo para tentar compreender as coisas”.

O senhor escreveu, no livro A Caverna,que as frases de efeito são “uma praga maligna”.Qual é a frase de efeito predileta de José Saramago?

Saramago: "Tento evitar,o mais que posso, as frases de efeito. Mas nem sempre consigo fugir à tentação de escrever uma. Só espero é que, se elas são só frases de efeito, as pessoas que as leiam ou as ouvem não as tomem demasiado a sério”.

Se o senhor fosse definir o Brasil numa só palavra, que palavra o senhor usaria?

Saramago: “Como é que se pode definir numa só palavra ? Se pudesse usar nem que fossem duas palavras, talvez eu conseguisse. Dê-me três palavras…..”

Quais seriam,então, as três palavras?

Saramago: “Eu definiria assim o Brasil: “Quando se decidem?”.

Qual é a grande pergunta que o escritor José Saramago não conseguiu responder até hoje?

Saramago: “A pergunta que não consigo responder é muito simples: para quê? Para que tudo isso? Vou morrer sem encontrar a resposta. Creio que ninguém nunca encontrou”.




Fonte: Blog de Geneton
29/04/2004

PS: A entrevista com José Saramago foi publicada, na íntegra, no livro As Grandes Entrevistas do Milênio (Globo Livros). Data de 2000 quando veio ao Brasil para o lançamento de A caverna.