Ensaio sobre a cegueira
Romance, 1995
Um dia normal na cidade. Os carros parados numa esquina esperam o sinal mudar. A luz verde acende-se, mas um dos carros não se move. Em meio às buzinas enfurecidas e à gente que bate nos vidros, percebe-se o movimento da boca do motorista, formando duas palavras: Estou cego.
Romance, 1995
Edição brasileira de Ensaio sobre a cegueira. Capa de Hélio de Almeida sobre relevo de Arthur Luiz Piza |
Um dia normal na cidade. Os carros parados numa esquina esperam o sinal mudar. A luz verde acende-se, mas um dos carros não se move. Em meio às buzinas enfurecidas e à gente que bate nos vidros, percebe-se o movimento da boca do motorista, formando duas palavras: Estou cego.
Assim começa o novo romance de José Saramago. A"treva branca" que acomete esse primeiro cego vai se espalhar incontrolavelmente pela cidade e, em breve, uma multidão de cegos precisará aprender a viver de novo, em quarentena. "Só num mundo de cegos as coisas serão o que verdadeiramente são." E, de fato, o que se verá é uma redução da humanidade às necessidades e afetos mais básicos, um progressivo obscurecimento e correspondente iluminação das qualidades e dos terrores do homem. (E das mulheres também, de maneira especial.)
Impressionante, comovedor, este romance é desde já um marco na literatura em língua portuguesa. É uma visão das trevas, uma viagem ao inferno, e a história de uma resistência possível à violência de tempos escuros. "Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos", diz uma personagem. Com característico controle, José Saramago - e seu alter ego furtivo, no romance - luta aqui para combater a inadequação, ou insuficiência das palavras para resgatar o afeto perdido.
Às vésperas do fim do milênio, num período onde imperam, de um lado, a velocidade, a ganância e a abstinência moral e, de outro, a profecia e um misticismo compensatórios, o escritor vem nos lembrar a "responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam". É um livro, então, sobre a ética, e é um livro também sobre o amor, e sobre a solidariedade. "Parece uma parábola", comenta alguém no romance; mas sua força, como nas melhores parábolas, vem precisamente do realismo e da descrição, no limite do inominável.
Cada leitor viverá, aqui, uma experiência imaginativa única, no esforço de recuperar a lucidez. "Se podes olhar, vê. Se podes vê, repara." A epígrafe resume a empreitada do escritor, como de cada leitor. Não se trata só de reparar no significado das coisas, mas também de proceder à reparação do que foi perdido, ou mutilado - "uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos".
[Arthur Nestrovski. Orelha da edição brasileira, publicada pela Companhia das Letras, 1995]