+A +/- -A
Filho de gente pobre e quase analfabeta, fez-se sozinho para existir com uma ideia de si e do mundo. Tornou-se escritor, um homem de convicções inabaláveis, em algumas delas teve de voltar atrás, noutras seguiu-as até a morte.

José Saramago, aos 76 anos, quando foi laureado com o Prêmio Nobel. fonte: NKVD

Cada ruga na cara de um homem conta uma história. Aos 76 anos (foto), no rosto de José Saramago, apenas em torno dos olhos, descaídos, cansados, se marcam linhas finas com uma expressão própria. Depois, há a boca, um traço estreito que tem de rasgar o rosto quando ri, ou que faz desaparecer os lábios, transformando-se numa faca afiada a denunciar a comoção. Um dia, a mesma boca do homem então com 18 anos, serralheiro mecânico nos Hospitais Civis de Lisboa, disse: "Aquilo que tiver de ser meu, às mãos me há-de vir ter." E por ela o destino foi traçado.

Nem Deus nem o Diabo foram chamados para este pacto. José de Sousa Saramago nasceu a 16 de novembro de 1922, numa casa humilde da Rua da Alagoa, freguesia de Azinhaga do Ribatejo, concelho da Golegã, a 32 Km de Santarém, 102 de Lisboa.

E logo ali se desuniram os fados. Para não pagarem uma multa, os seus pais, José de Sousa, jornaleiro, e Maria da Piedade, doméstica, ambos com 24 anos, decidiram registrar o menino como tendo nascido a 18 novembro. Calharam mal a sorte, o dia e o oficial do Registro Civil. Afirmaria décadas mais tarde o escritor que o funcionário da Conservatória estava bêbado e por isso se enganou e escreveu, juntando-lhe ao nome a alcunha da família: Saramago, nome de planta daninha com que por maldade era apelidada. Se foi isto que aconteceu mesmo, não sabemos. Abre-se aqui uma incógnita.

Os primeiros anos

O escritor aos 6, 8 e 10 anos, respectivamente. Arquivo: Fundação José Saramago 

Com a palavra "saramago", hoje pronunciada nos quatro cantos do mundo, nasceu outra incógnita. A sua origem, árabe, parece ser também a de um dos ramos da genealogia do escritor. Ele mesmo o refere na crônica Retrato de antepassados publicada em n'A bagagem do viajante (originalmente no jornal A capital, em 1969) lembrando as histórias fabulosas que ouvia quando pequeno  sobre um bisavô materno, oriundo da África do Norte, falecido na Azinhaga. Seria este "um homem alto, magríssimo e escuro, de rosto de pedra, onde um sorriso, de tão raro, era uma festa". Contava-se que teria morto um homem em circunstâncias obscuras , "a frio, como quem arranca uma silva". E o menino José tremia só de ouvir.

Recuemos portanto com ele até ao tempo da infância. Tinha Saramago dois anos quando o pai José de Sousa decide migrar de Azinhaga para Lisboa e para um emprego na esquadra da Polícia de Segurança Pública, onde chegaria a subchefe. Em dezembro do mesmo ano, 1924, morre o único irmão, Francisco, com quatro anos e dois meses, vítima de uma broncopneumonia. O choque desta morte afetará para sempre aquele lar. Desse irmão, Saramago nada mais virá a saber; a mãe apenas lhe diz, "em ocasiões que [ele] achava mal escolhidas, que o Chico tinha as faces coradíssimas, ao contrário [das dele], que sempre puxaram para o pálido" (cf. Cadernos de Lanzarote, Diário IV). Futuramente, a busca por resquícios desse passado é o que levará a compor o romance Todos os nomes.

A família Sousa tem uma vida dura; mora em quartos alugados, águas-furtadas ou partes de casa, na área do Alto de Pina, primeiro na desaparecida Quinta do Perna-de-Pau, depois na Rua E (hoje Rua Luís Monteiro) e na Rua Carrilho Videira. No entanto, aos oito anos, o menino já aprendera a ler muito bem, na Escola Primária da Rua Martens Ferrão, depois na do Largo do Leão, com o professor Vairinho "um homem alticalvo, grave quanto bastava para acentuar a respeitabilidade da sua posição de director, mas, ainda assim, nosso amigo e nada exagerado na disciplina" (cf. A Bagagem do Viajante).


Os avós maternos, Josefa da Conceição e Jerónimo Melrinho, que foram
as maiores referências do escritor. Arquivo: Fundação José Saramago

Na escrita, "fazia poucos erros para a idade, só a caligrafia era má, e assim veio a ficar sempre". Em compensação, José Saramago devorava as páginas do Diário de Notícias.

Os anos de aprendizado

Pouco mais havia em casa para ler: um guia de conversação de Português-Francês assinado por Molière; e um livro grande, "com histórias de chorar", A Toutinegra do Moinho, de Émile de Richebourg, encadernado de azul e religiosamente guardado pela mãe numa gaveta da cômoda, embrulhado em papel de seda e cheiro de naftalina.

Ao contrário do seu marido, Maria da Piedade, como muitas mulheres da época, nunca soube ler. Quase no final da sua vida, a única neta, Violante, lhe ensinaria a assinar o nome. Mas foi ela, com um inusitado espírito visionário, quem comprou o primeiro livro que, aos 13 anos, o filho teve como seu: O Mistério do Moinho, de J. Jefferson Farjeon. Apontou-o o futuro escritor no escaparate de uma papelaria, deliciado com o presente que ia levar para as férias grandes, sempre passadas em Azinhaga com os avós maternos. Aí, entre a mudança da palha das pocilgas, os passeios entre os troncos torcidos das oliveiras ou "o desnocar da nuca dos coelhos com uma pancada seca do cutelo da mão", Saramago teve o seu primeiro contato com o mundo da literatura.


Os pais, Maria da Piedade e José de Souza. Arquivo: Fundação José Saramago

"E agora meus pais nesta fotografia com mais de cinquenta anos, tirada quando meu pai já voltara da grande guerra - a que para sempre ficou sendo a Grande Guerra - e minha mãe estava grávida de meu irmão morto, morto menino, de garrotilho. Estão os dois de pé, belos e jovens, de frente para o fotógrafo, mostrando no rosto uma expressão de solene gravidade que é talvez temor diante da câmara, no instante em que a objectiva vai fixar, de um e de outro, a imagem que nunca mais tornarão a ter, porque o dia seguinte será implacavelmente outro dia... Minha mãe apoia o cotovelo direito numa alta coluna e segura na mão esquerda, caída ao longo do corpo, uma flor. Meu pai passa o braço por trás das costas de minha mãe e a sua mão calosa aparece sobre o ombro dela como uma asa. Ambos pisam acanhados um tapete de ramagens. A tela que serve de fundo postiço ao retrato mostra umas difusas e incongruentes arquitecturas neoclássicas". (A bagagem do viajante)

"Foi no Verão [de 1941]. Combinara com uns amigos ir passar
o fim-de-semana sob a tenda, ali para a lagoa de
Albufeira" (Deste Mundo e do Outro). Arquivo: Fundação José Saramago

"Nunca tive ambições na vida!", disse certa vez. Em fevereiro de 1995, no terceiro volume dos Cadernos de Lanzarote, espécie de inventário do cotidiano, que o escritor iniciou em 1993, escreveu: "A mim estas coisas assombram-me, quase me deixam sem palavras (...). O rapazito que andou descalço pelos campos da Azinhaga, o adolescente de fato-macaco que montou e tornou a montar motores de automóveis, o homem que durante anos calculou pensões de reforma e subsídios de doença, e que mais adiante ajudou a fazer livros, e depois se pós a escrever alguns, esse homem, esse adolescente e esse rapazito acabam de ser nomeados Doutor Honoris Causa pela Universidade de Manchester."

A distinção também seria uma entre as muitas que viria a receber - culminando na entrega, pelo Presidente Jorge Sampaio, do Grande Colar da Ordem Militar de Santiago da Espada, a mais alta condecoração portuguesa, até agora reservada a chefes de Estado.

O escritor e jornalista Baptista-Bastos, conheceu Saramago em início de 1965, num restaurante do Bairro Alto, e recorda-o como "um tipo bem posto, com um ar gravíssimo, profundamente triste e sonhador". E sustenta: "Por mais que o negue, ele é um animal místico, a braços com a transcendência de si próprio." Fala de uma ferida oculta e nunca cicatrizada, carregada por Saramago até à morte, essa etapa que, a este ateu confesso, pareceu não inspirar qualquer temor. Baptista-Bastos ainda descreve-o como "um homem de amor, extremamente hábil e inteligente, alguém coerente e congruente com o quadro moral e ideológico que lhe serve de couraça". No livro que o jornalista escreveu sobre ele  (José Saramago, Aproximação a Um Retrato), o autor de Memorial do Convento deixará dito: "Sou incapaz de mostrar uma alegria profunda. Algo me impede de dar-me em espectáculo a mim próprio."

Com 44 anos, quando publica o primeiro livro de poesia, Os poemas possíveis.
Mais tarde, afirma: "Poderia ser um poeta com alguns poemas mais ou menos bons,
mas não mais do que isso.". Fonte: NKVD

De onde lhe vem esta tão rígida concepção de si próprio e do mundo? "A raiz para muitos dos meus comportamentos de adulto está na impossibilidade de, em criança, chegar à minha família", responde. À descrição do modo como, então, a mãe lhe negava afeto, junta o retrato dos avós matemos, Josefa e Jerónimo, e da sua luta sem tréguas pela vida. Dos avós paternos, o guarda de herdades João de Sousa e a doméstica Carolina da Conceição, nascidos, respectivamente, em 1869 e 1871, pouco desvenda. Mas, por várias vezes, nos seus livros, Saramago emoldura com uma aura romântica os feitos daquele "avô guardador de porcos, de cujos pais nada se sabia, posto na roda da Misericórdia, homem toda a vida secreto, de mínimas falas, também delgado e alto como uma vara". (A Bagagem do Viajante). E emolduraria esse amor pelos avós, de vez, no discurso de entrega do Prêmio Nobel, em 1998: "O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez os meus avós maternos, da pequena criação de porcos que, depois do desmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia. Azinhaga de seu nome, na província do Ribatejo. Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro. No Inverno, quando o frio da noite apertava ao ponto de a água dos cântaros gelar dentro da casa, iam buscar às pocilgas os bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama. Debaixo das mantas grosseiras, o calor dos humanos livrava os animaizinhos do enregelamento e salvava-os de uma morte certa."

Filho das ervas ou "filho oculto de uma duquesa", o analfabeto Jerónimo, de cajado na mão, capote enlameado e imensa sabedoria, é uma referência fundamental na sua vida. Com ele enrolado numa manta lobeira, debaixo de uma figueira da Azinhaga e numa noite morna de Verão, o menino José aprenderá os segredos das estrelas. Com a sua mulher, Josefa, "a mais bela rapariga do seu tempo", Jerónimo fará sete filhos, dormirá na mesma cama com os bácoros, viverá "uma vida difícil, de desconforto, de ignorância". No final, deixa ao neto como herança a marca indelével da luta pela subsistência e da crueza do destino dos pobres, aquilo a que Baptista-Bastos virá a chamar "uma moral proletária do trabalho".

O dever do trabalho, a disciplina férrea com que sempre o enfrentou, remontam ao período entre 1934 e 1939, quando aprendia o ofício de serralheiro mecânico na antiga Escola Industrial Afonso Domingues, em Xabregas, para onde se transferira, por falta de recursos econômicos, do Liceu Gil Vicente. Explica, no terceiro volume dos Cadernos de Lanzarote: "Nessa altura compreendi que quando produzimos uma peça de um mecanismo, ela tem que entrar em harmonia com as outras peças, tem que funcionar, tem que ser bem feita." Nas oficinas, "iluminadas por altos janelões que davam para rua da Madre de Deus", José obedecia às ordens dos mestres Vicentino, Teixeirinha e Gião. Com tanto esmero o fazia que no seu caderno de aluno mediano, ficará a brilhar um 15 em Serralharia, e outro em Francês. Este contradiz as suas notas em Português, que não ultrapassam o 11, mas deixa adivinhar o seu desempenho, entre 1955 e 1981, como tradutor de 48 livros.


Fotografia de fim de curso de Serralharia, em 1938. José Saramago é do centro do grupo, na última fila. Fonte: NKVD 

José Saramago faz-se, entretanto, um homem. Logo aos 16 anos, quando termina o curso técnico, começa a ganhar o seu sustento, como serralheiro mecânico, nas oficinas dos Hospitais Civis de Lisboa. Mais tarde, relata a Zeferino Coelho, que foi seu amigo e diretor da Caminho (que desde 1980, foi editora de todos os seus livros), a indignação que sentiu num dia em que estava comendo a marmita com os outros trabalhadores. Passou por ele o seu chefe, acompanhado de alguém a quem mostrava as oficinas e as máquinas, mas nem por um segundo os visitantes detiveram o olhar sobre os trabalhadores, postos "em sentido". Ele, Saramago, foi o único que permaneceu sentado. Comenta Zeferino: "julgo que a sua rebeldia nasceu ali, na percepção da sua condição de operário. É por isso que, há bem pouco tempo, em jeito de brincadeira, ele me disse que tinha inventado 'o comunismo hormonal'."

José Saramago aos 18 anos. Arquivo: Fundação José Saramago

Mas José nunca foi um operário qualquer. "Calado, metido consigo, (...) tem poucos livros em casa porque o ordenado é pequeno, mas leu na Biblioteca Municipal das Galveias tudo quanto a sua compreensão logrou alcançar." (Aviso introdutório à reedição de Terra do Pecado, em 1997). Nestas páginas, que devora em horário noturno, descobre os autores para sempre seus favoritos: Gogol, Kafka, Fernando Pessoa e Ricardo Reis (que andou muito tempo a pensar que o heterônimo pessoano fosse na verdade gente de "carne e osso"), Cervantes, Montaigne, Padre António Vieira e Raul Brandão. O gosto pelas palavras torna-se de tal modo evidente que, em outubro de 1942, a administração dos Hospitais Civis de Lisboa o transfere, como auxiliar de escrita, para uma das Repartições, à razão de nove escudos por dia. Então, "é tão cumpridor e pontual que à hora de começar o serviço já está sentado à pequena mesa em que trabalha, ao lado da prensa das cópias."


O casamento com Ilda Reis, em 1944. Fonte: NKVD

Quando, em 1943, um ano antes de rescindir o contrato com os Hospitais Civis, Saramago começa a trabalhar na Caixa de Abono de Família do Pessoal da Indústria de Cerâmica. Ilda Reis já entrara na sua vida. Também com 20 anos, esta moça morena e bonita, natural de Lisboa, era datilógrafa na sede dos Caminhos de Ferro de Portugal. Por estranha coincidência, enamorara-se de um José que, em pequeno, sonhava vir a ser maquinista de trem, depois piloto militar, por fim escrevinhador. O casamento dá-se em 1944 e dura 26 anos, mas sobre ele o escritor nada deixará dito.

Com Ilda Reis e filha Violante, 1951. Fonte: NKVD

O mesmo acontece com todas as outras paixões da sua vida, exceção feita para a última, com a jornalista espanhola Pilar del Río, celebrada em casamento, em 1988. Da relação que, durante 20 anos, até 1986, mantém com a escritora Isabel da Nóbrega - que, em 1964, tem 39 anos, e já ganhara o Prémio Camilo Castelo Branco com o romance Viver com os Outros - José Saramago apaga todas as referências.

Nas reedições dos livros publicados até 1984, desaparecem assim as dedicatórias: "Não se dirá aqui o nome. Mas da sua exaltação nasceu este poema, do seu riso esta autobiografia, da sua verdade esta meditação" (Deste Mundo e do Outro, 1971); "À Isabel, sempre" (Levantado do Chão, 1980); "À Isabel, porque nada perde ou repete, porque tudo cria e renova" (Memorial do Convento, 1982); ou "À Isabel, outro livro, o mesmo sinal" (O Ano da Morte de Ricardo Reis, 1984).

José Augusto França, que foi amigo do escritor pela época de seu envolvimento com Isabel, explica que "a Isabel, filha das chamadas boas famílias, empurrou-o para um meio social que não era o dele. Acreditou nele e incentivou-o a explorar o imenso talento que já antes possuía." Zeferino Coelho remata: "Acho que tiveram uma relação de intensa paixão que, com o convívio do dia-a-dia, se foi degradando."

Voltemos, entretanto, a meados da década de 1940. Como "seguimento de leituras mal arrumadas e mal organizadas", Saramago escreve o seu primeiro romance, A Viúva. A história tem jeitos de fatalista enredo camiliano, envolve uma viúva ribatejana, a sua paixão pelo cunhado e a chantagem que sobre os dois é feita por uma criada, Benedita, figura gêmea da Juliana de Primo Basílio, de Eça de Queirós.

Em 1947, o manuscrito é enviado pelo candidato a escritor, "com notável atrevimento, sem padrinhos, sem empenhos, sem recomendações" (cf. o Aviso na reedição), para a editora Parceria António Maria Pereira. Por inexplicáveis razões, pouco tempo depois reaparece nas mãos de Manuel Rodrigues, da editora Minerva, que lhe altera o título para Terra do Pecado, convence Saramago a prescindir dos direitos de autor, e publica-o ainda nesse ano. Colhendo duas ou três razoáveis críticas, o volume depressa cai no esquecimento. Será rejeitado pelo próprio escritor, que o retira da sua bibliografia, até 1997, quando José Carlos de Vasconcelos o recupera no Jornal de Letras, assinalando os seus 50 anos de escritor, e ele se decide assumi-lo.

Aos 26 anos, com um livro publicado, uma filha que acabou de nascer e a quem "medievalmente" dá o nome de Violante, e umas quantas árvores plantadas na Azinhaga, a José "pouco mais resta para fazer na vida". Mas não, não baixa os braços, e produz mais um original, Clarabóia. O romance, dirá ele, em 1997, a Carlos Reis, "é a história de um prédio com seis inquilinos sucessivamente envolvidos num enredo" (Diálogos com José Saramago).

Na época, o amigo e pintor Figueiredo Sobral encarrega-se de o enviar para a Empresa Nacional de Publicidade. Mas só em 1990, quando procede à reorganização dos seus arquivos, a editora dá sinal do manuscrito ao escritor. "Eu próprio me havia esquecido dele durante todos estes anos; sempre tive consciência de que não se perdeu grande coisa em não ter sido publicado", disse Saramago. "Uma das grandes incógnitas da biografia do José", diz um dos seus amigos mais próximos, José Manuel Mendes, "é o facto de, durante 19 anos, entre a criação de Clarabóia e a edição de Os Poemas Possíveis, em 1966, ele não ter escrito nada." Habituado a desmistificar todas as questões que lhe dizem respeito, Saramago é rápido na explicação: "Durante todo esse tempo, eu não estava decepcionado com a recepção de Terra do Pecado, não pensava acumular experiência para escrever mais tarde... Simplesmente, achava que não tinha nada para dizer." Hoje, depois da exposição A consistência dos sonhos, em vários inéditos vieram a lume, sabe-se que há uma extensa produção - de poemas, de romances, acabados ou não - ainda inéditos. Não foram tão silenciosos assim esse anos entre o primeiro romance e o primeiro livro de poesia.

Nas férias, Saramago no Colmeal, Serra da Lousã. Fonte: NKVD

Militâncias

Em 1949, como consequência do seu apoio à campanha eleitoral de Norton de Matos, o candidato da oposição à Presidência da República, Saramago é afastado da Caixa de Abono da Indústria de Cerâmica. Mas, graças a um antigo professor da Escola Afonso Domingues, consegue emprego na Caixa de Previdência do Pessoal da Companhia Indústrias Metálicas Previdente, onde, até 1959, calculará subsídios e pensões.

Na manhã de 25 de Abril de 1974, a revolução encontra "um homem com meia dúzia de livros publicados, mas que não tinham importância por aí além". É o próprio quem o afirma, referindo-se aos títulos de poesia Os Poemas Possíveis (1966) e Provavelmente Alegria (1970), e aos registos das suas crônicas e textos de opinião publicados na Seara Nova, nos jornais A Capital e Jornal do Fundão (A Bagagem do Viajante, 1973) e Diário de Lisboa (As Opiniões Que o DL Teve, 1974).

Por insistente sugestão de Isabel da Nóbrega, Saramago é então convidado para, no Fundo de Apoio aos Organismos juvenis (FAOJ), dependente do Ministério da Educação, coordenar uma equipe de dinamização cultural que integra a própria Isabel (Literatura), Mário Barradas (Teatro), Rui Mário Gonçalves (Artes Plásticas), Vasco Granja (Cinema) e José Ribeiro da Fonte (Música). Ainda em 1974, Saramago passará a  assessor do Ministério da Comunicação Social.


Saramago com os avós Josefa e Jerónimo, em Azinhaga. Fonte: NKVD

Desde 1955, o seu nome é conhecido nos meios intelectuais. Empregado na editora Estúdios Cor, a convite de Nataniel Costa; nela ficou dezesseis anos. Segundo o design gráfico da editora, Luís Correia, "Saramago ganha mal, mas faz a revisão de todos os livros, contacta os autores, é incansável".No meio destas andanças, é convidado para traduzir livros e escrever crônicas, "nas quais já se nota uma mão feliz" (Baptista-Bastos), por vezes de pendor autobiográfico e, na medida do possível, político.

Empenhado na luta contra o regime, em 1969, é convidado, pelo seu amigo Augusto Costa Dias, diretor da Portugália Editora, para entrar no Partido Comunista Português.

No seu percurso como comunista, sempre fiel à ideologia marxista, Saramago não abdicará de manifestar as suas divergências. Assim, em 1988, assina o "documento da Terceira Via", defensor de uma maior abertura interna. Antes, na sequência do 25 de Novembro de 1975, quando é afastado do cargo de director-adjunto do Diário de Notícias fica desempregado e não encontra qualquer tipo de apoio por parte do PCP, que aparentemente o deixa cair por ter sido demasiado radical ou extremista. Sofre o primeiro rude golpe no idealismo comunista; o segundo ainda estará por vir quando do fuzilamento de três cubanos na ilha de Fidel Castro, em abril de 2003.

José Saramago com a mãe, à porta da casa térrea onde nasceu. Pouco depois, ela seria demolida, por causa de "uma história de partilhas e ódio fraterno". Fonte: NKVD

O profissional da palavra

Na verdade, é em 1976, quando todas as portas se lhe fecham, que nasce um novo Saramago, o escritor. Abandona todas as outras profissões, exceto a de tradutor, que mantém, durante alguns anos, na Moraes Editores, dirigida por Nelson de Matos.

Após a publicação de mais dois livros, um de poesia, O ano de 1993 (Futura, 1975) e outro de contos, Objecto quase (Moraes, 1977), e de um "ensaio de romance" (Manual de pintura e caligrafia, Moraes, 1978).

Em 1979, Manuel Dias Carvalho, do Círculo de Leitores, convida-o para elaborar um roteiro de Portugal, que ele transformará no registo livre de histórias de um viajante. O livro, publicado sob o nome de Viagem a Portugal, muito bem pago pela editora, é um êxito e permite-lhe, enfim, dedicar-se exclusivamente à escrita.

Depois de longas pesquisas e entrevistas junto aos trabalhadores rurais da Unidade Coletiva do Alentejo, em Lavre, quando lança-se por fim na escrita de ficção, é publicado Levantado do chão: "um livro sobre o Alentejo. Um livro, um simples romance, gente, conflitos, alguns amores, muitos sacrifícios e grandes fomes, as vitórias e os desastres, a aprendizagem da transformação, e mortes. É portanto um livro que quis aproximar-se da vida, e essa seria a sua mais merecida explicação. Leva como título e nome, para procurar e ser procurado, estas palavras sem nenhuma glória - Levantado do chão (impresso na contra-capa da edição brasileira publicada pela Bertrand Brasil).

O livro levará Prêmio Internacional Ennio Flaiano e Cidade de Lisboa, dois grandes primeiros prêmios que lucra o escritor. Em Levantado do chão nasce aquilo que depois de se institui como o "estilo saramaguiano".

Depois, virá Memorial do convento, O ano da morte de Ricardo Reis e uma leva infinda de boas críticas tanto por parte do público leitor, com a recepção a cada romance, como por parte da academia, que vê em Saramago o maior gênio da Literatura ainda em vida. 

O união com Pilar 

Pilar faria do escritor um homem menos sisudo. Conhece a jornalista que se encantara como leitora de seus romances, em 1986, quando Pilar desembarca em Lisboa para fazer-lhe uma entrevista. Dois anos depois, numa cerimônia particular, casam-se.

Aos 66 anos, o escritor casa-se, numa cerimônia fechada, realizada na sua casa de Lisboa, com a jornalista Pilar del Río, 28 anos mais nova do que ele. Fonte: NKVD

O amor por Pilar fica impresso em boa parte das imagens que se tem do escritor; principalmente as de seus últimos anos de vida - Pilar foi, certamente, seu ombro. Impresso fica também nas dedicatórias com que assina todos os livros de 1988 para cá: "A pilar" (História do cerco de Lisboa, 1989); "A Pilar, até ao último instante" (O homem duplicado, 2002); "A Pilar, os dias todos" (Ensaio sobre a lucidez, 2004); "A Pilar, minha casa" (As intermitências da morte, 2005); "A Pilar, que ainda não havia nascido, e tanto tardou a chegar" (As pequenas memórias, 2006); "A Pilar, que não deixou que eu morresse" (A viagem do elefante, 2008); "A Pilar, como se dissesse água" (Caim, 2009). 

O veto 

Ao reescrever como fatos históricos que são os acontecimentos do Novo Testamento, que dizem respeito à vida de Jesus, em O Evangelho segundo Jesus Cristo, Saramago causa verdadeiro celeuma no interior das bases católicas e políticas, a ponto de sofrer veto e não concorrer ao Prêmio Literário Europeu. Isso, Saramago jamais esperou, numa sociedade que diz ter atingido uma maioridade democrática.

"Entre os fins de abril e junho de 1992, o assunto ganhou contornos de escândalo nacional e rumou até para o exterior. Foi debatido em pleno Parlamento. Provocou tensões entre o governo e a presidência da República. Chegou à política internacional e às mais altas instâncias comunitárias. Concitou repúdio unânime dos meios culturais." (João Marques Lopes, Saramago - Biografia).

Quase um ano de querela,  o caso sofre uma reviravolta: as autoridades agora desfazem e a censura e permitem a inscrição do romance ao Prêmio, pelo que Saramago recusa: "Não aceito esta decisão, em primeiro lugar porque nenhuma autoridade se pode outorgar o direito, sejam quais forem os fins e os motivos, de se servir duma obra contra a vontade do seu autor, e em segundo lugar porque, não sendo a deontologia, para mim, uma palavra vã, me recuso absolutamente a ocupar um lugar que antes esteve ocupado por outro colega de profissão, independentemente das razões por que lá o colocaram" (Carta datada de 8 de junho de 1992).  

O fato foi tão grave ao escritor que, depois de viver toda vida em  Portugal, deixa o País para ir viver com Pilar del Río, em Tías, cidade de Lanzarote, ilha no arquipelágo das Canárias, onde constrói A casa.

Em 1993, na varanda da casa de Lanzarote, Saramago rodeado por Pilar, o filho desta, Juan Jose, o cão Camões, o neto e a neta (Tiago, 14 anos e Ana, 26, engenheira informática), o genro Danilo, e a filha, Violante. Fonte: NKVD

Mais tarde, a ideia de autoexílio seria desmistificada pelo próprio escritor: "Os meus cunhados vivem na ilha há anos, e em 1991, aproveitando uma passagem por Las Palmas e Tenerife, viemos vê-los. Gostamos logo muito. Depois passamos cá um fim de ano e, ao voltarmos a Lisboa, diz-me a Pilar: e se fizéssemos uma casa em Lanzarote? Respondi: estás doida! Mas perco sempre. Iam assim as coisa quando aconteceu o Lara" (Revista Visão, de 25 de março de 1993).

O Nobel

Pelo nova morada, ou não, a ficção do autor dá uma reviravolta. Deixa o discurso da História como materialidade para as narrativas e opta por materiais alegóricos, cuja temática é o homem como um todo, seu espaço e suas construções. É assim, por exemplo, que é publicado o magistral Ensaio sobre a cegueira, em 1995 - livro que narra uma insólita epidemia de cegueira branca num país inominado, uma alegoria para o atual estágio social, preso a uma virtualidade, que lhes castra o poder de opinião e de luta frente ao desrumo da realidade.

Por esses e outros motivos, mais pela qualidade de sua obra, é-lhe dado o reconhecimento em definitivo: em outubro de 1998, através do comunicado oficial - "pela sua capacidade de tornar compreensível uma realidade fugidia, com parábolas sustentadas pela imaginação, pela compaixão e pela ironia" - a Real Academia Sueca atribui ao escritor o Prêmio Nobel de Literatura.

Saramago lê o discurso de recebimento do Prêmio Nobel, em 7 de dezembro de 1998. Foto de FLT-PICA Bild AB. Fonte: Internet/Divulgação

Depois do Nobel, multiplicam-se as condecorações e os prêmios ao redor do mundo. E viagens. Muitas viagens para o homem que só veio sair de Portugal para uma viagem internacional aos quarenta e seis anos.

José Saramago em Paris, 1998. Foto de Daniel Mordzinski. Fonte: Internet/Divulgação

Os últimos anos

Depois de uma doença que o deixa internado por três meses, Saramago reaparece na cena literária com um novo romance. Chama-se A viagem do elefante. E, de então, é perceptível aos seus leitores uma inquietação como se os dias finais estivessem para chegar e ainda muito teria por dizer. Em menos de quatro meses reacende a polêmica junto aos órgãos religiosos ao escrever Caim. Inaugura um blog na internet em que passa a falar sobre tudo o que lhe apetece e lhe inquieta - seja a política, a economia, a religião. Entre o lançamento de A viagem do elefante, em 2008, até meados de 2010, foram publicados, além de Caim, mais quatro livros do escritor: O caderno, volumes 1 e 2, com as entradas diárias feitas para o blog, José Miguéis/José Saramago - correspondências, que reúne cartas trocadas entre ambos os escritores entre os anos de 1959 e 1971, e Universidad y democracia, um texto político, em que reflete sobre o papel da Universidade e dos cursos superiores na formação dos sujeitos. Sabe-se, ainda que trabalhava, desde o término de seu último romance, num livro que tinha como tema a questão do tráfico internacional de armas. Se chamaria pelo incomum título Alabardas! Alabardas! Espingardas! Espingardas!

Entretanto não tivemos a oportunidade de pegar o livro em mãos completo. No dia 18 de junho de 2010, pela manhã, chega através de todos os aparelhos de comunicação e mídias, a notícia que entra já, como a maior perda da humanidade para século que ainda se inicia: é dada a morte, por falência múltipla dos órgãos, do escritor que, a vida inteira, esteve a por sua voz e suas ações à serviço de um outro mundo: "Sonhou com uma terra livre - livre de opressão, de miséria e de perseguição. Sonhou com um mundo em que os fortes eram mais justos e os justos eram mais fortes." (palavras de María Teresa Fernández de la Vega, vice-representante do Governo espanhol, durante a cerimônia fúnebre de José Saramago, em Lisboa).


* Este texto foi composto com base nas notas do texto A vida segundo José Saramago publicado no site NKYD, notas dos livros do escritor A bagagem do viajante e Cadernos de Lanzarote e do livro Saramago - Biografia, de João Marques Lopes. Para editá-lo entre em contato com o mantenedor do espaço.