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Narrador se agiganta e engole a ficção

por Adriano Schwartz

O título As intermitências da morte é apropriado, pois o enredo tem a ver com essa ideia de algo que para e recomeça, de algo intermitente. Mas o aguardado novo romance do português José Saramago também poderia se chamar "as experiências da morte", afinal, acima de tudo, é disso que trata. Primeiro ela decide deixar de "funcionar". Em um país cujo nome não se sabe, ninguém mais morre a partir do primeiro dia do ano. Por algum tempo, são as consequências dessa inexplicável "greve" que o leitor acompanha. Aí, uma carta avisa que quem deveria ter morrido no período e, em princípio, escapara, morreria finalmente e que, a partir daquele momento, as pessoas passariam a ser avisadas com alguns dias de antecedência sobre os seus "falecimentos" para poderem se preparar adequadamente. Por fim, um desses desfechos anunciados não se realiza, deixando a entidade responsável por ele bastante intrigada. Então temos o surgimento, por falta de palavra melhor, de uma "relação" entre esta morte personificada e um certo violoncelista que consegue, sem que ela saiba por quê, escapar de seu destino.

Este é um resumo possível da obra mais desigual escrita por Saramago. Se em vez de um romance ele tivesse concebido um conto, ou uma pequena novela, apenas com a parte final do texto, teria produzido uma peça notável. Não adianta, contudo, pensar em tais hipóteses com o livro lançado. Ele agora existe como é e, assim sendo, cria um acontecimento inusitado. Comenta-se muito, entre os críticos do escritor português, o fato de que, com algumas exceções, as suas narrativas não terminam tão bem quanto poderiam.

O caso mais emblemático é o do Ensaio sobre a cegueira, obra-prima que tem seu brilho ofuscado por um final redentor absolutamente desnecessário.

Em As intermitências da morte, entretanto, ocorre o contrário. Durante páginas e páginas, o leitor fica se perguntando para onde está sendo conduzido e acompanha personagens que surgem e desaparecem sem grandes razões, subtramas bobas e trechos de assustadora redundância. Um exemplo talvez demonstre não haver exagero aqui: "Por aí se sai novamente ao corredor, mesmo em frente de uma porta em que a morte não necessitou tocar para saber que se encontra fora de serviço, isto é, nem abre nem fecha, modo de dizer contrário à simples demonstração, pois uma porta da qual se diz que não abre nem fecha é unicamente uma porta fechada que não se pode abrir, ou, como também costuma dizer-se, uma porta que foi condenada (...)". A conclusão do livro, contudo, se não redime o conjunto, mostra- se à altura do único escritor de língua portuguesa a conquistar o Prêmio Nobel de Literatura.

Existem razões para explicar essa oscilação, e a principal delas está ligada a um personagem central em toda a ficção de Saramago: o narrador. Para discutir isso, porém, vale a pena recordar os principais momentos da sua longa carreira literária. O primeiro livro, Terra do pecado, publicado em 1947 e durante muito tempo renegado, antecedeu em trinta anos o seguinte, Manual de pintura e caligrafia. A partir daí, sua produção romanesca seguiu um ritmo mais ou menos regular, com um novo livro a cada dois ou três anos.

Levantado do chão (1980) trouxe a principal novidade estilística do autor, desde então incorporada a toda sua produção ficcional (com exceção evidente das peças de teatro), o uso intensivo da vírgula como sinal fundamental da pontuação do texto, ocupando a função de todos os outros sinais, menos o ponto final. Já Memorial do convento (1982) narrava a história de amor entre Baltazar e Blimunda, tendo como pano de fundo a construção do convento de Mafra, e conferiu ao autor reputação internacional. É até hoje um de seus livros mais lembrados e foi, inclusive, adotado em importantes vestibulares no Brasil.

Com a publicação, no ano seguinte, em 1984, de O ano da morte de Ricardo Reis, o autor concluiu um de seus projetos mais grandiosos. A idéia que originou o livro é simples e engenhosa: quando morre, em 1935, Fernando Pessoa só havia "matado" um de seus heterônimos, Alberto Caeiro. Saramago se pergunta o que teria acontecido com os outros e resolve contar como, após receber um telegrama de Álvaro de Campos, informando-o da morte de Pessoa, Ricardo Reis resolve deixar o Brasil, onde morava, e voltar para Lisboa, local onde passará o último ano de sua vida, em meio a dois amores, encontros com o "fantasma" de seu criador, uma espécie de batalha com um narrador que não gosta muito dele e todos os eventos de uma conturbada Europa que vivia os prenúncios da Segunda Guerra Mundial.

Os dois romances subseqüentes, A jangada de pedra (1986, transformado em filme pelo diretor holandês George Sluizer em 2002) e História do cerco de Lisboa (1988), lidaram, respectivamente, com a inserção de Portugal no continente europeu e com o próprio surgimento da nação portuguesa. Apesar de as relações entre ambos serem inúmeras, é no paralelo traçado entre as peripécias de amor de dois casais, Raimundo Silva-Maria Sara (no presente) e Mogueime-Ouroana (em 1147, momento da tomada de Lisboa aos mouros), em História do cerco de Lisboa, que o autor delineia de modo mais elaborado e explícito a sua concepção do acontecimento transgressor (no caso, o "não" inserido por Raimundo Silva em um trecho de um livro de história que ele revisava) como motor de um humilde, limitado, mas necessário engrandecimento possível. Se se prestar atenção, essa concepção encontra-se presente em praticamente todas as obras aqui lembradas. Em As Intermitências da morte, a transgressora é a própria entidade, que resolve parar de cumprir sua ancestral tarefa, tirar vidas, sendo ela que, ao final do romance, por paradoxal que pareça, fica engrandecida, "humanizada" pelo contato com o ser a quem até então tratara com distanciamento.

Em 1991, foi lançado o polêmico O evangelho segundo Jesus Cristo. Ao recontar a história de Cristo, o autor provocou a ira de religiosos em todo o mundo, não tanto por seu Jesus, mas pela maneira como retrata Deus no romance, como um calculista manipulador, disposto aos mais cruéis atos para aumentar seu rebanho terreno (posteriormente, a obra foi adaptada com sucesso para o teatro). A publicação de O evangelho delimita o fim de um ciclo na obra romanesca do escritor e o início de outro, marcado pela adoção de uma ficção de tom alegoricizante, de extração quase mítica, em que as até então fortes ligações com os fatos históricos e, especificamente, com Portugal, são deixadas de lado, apesar de todas as outras principais características se manterem, instante em que o escritor diz ter "acabado a descrição da estátua e passado para o interior da pedra". Fazem parte desse novo ciclo Ensaio sobre a cegueira (1995), Todos os nomes (1997), A caverna (2000) e Ensaio sobre a lucidez (2004), com destaque para o primeiro em que, a despeito do já citado final decepcionante, o autor narra com precisão aterrorizante a evolução de uma cegueira branca que a (quase) todos contamina.

Nesse período, em 2002, ele também publicou O homem duplicado, livro de difícil inserção na obra do autor e que a crítica ainda não teve tempo de estudar devidamente, mas que parece conter em sua estrutura e tematização algumas facetas fundamentais de sua ficção, como o jogo de duplicações, as lutas com o narrador e a distorção do senso comum. É quase como se o autor tirasse a "carne" de uma de suas obras e resolvesse deixar à mostra a ossatura: trata-se de algo incompleto, como um raio x, mas que fornece ao intérprete uma visão interna muito útil e esclarecedora.

Em todas essas obras está presente um narrador bastante peculiar, por ser tendencioso e adorar fazer comentários sobre o que está contando (as famosas digressões), buscando dirigir o leitor para os caminhos que julga adequados. Em História do cerco de lisboa, por exemplo, ele simpatiza com os dois casais protagonistas e os trata com "carinho". Já em O ano da morte de Ricardo Reis, ele claramente despreza a posição distanciada do personagem ("Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo", afirma o poeta em seu mais famoso verso) e atua no romance quase como um antagonista, buscando bloquear as modificações por que passa o heterônimo na sua vida após a morte de seu criador.

Até agora, contudo, essa estratégia ficcional convivia com uma preocupação muito evidente com o desenvolvimento do enredo. O narrador se tornava de fato um personagem fundamental na história que estava sendo contada (não é por acaso que Saramago é um dos escritores em que mais facilmente se aplicam as idéias do pensador russo Mikhail Bakhtin a respeito do gênero romance e das múltiplas vozes que o compõem). Em As intermitências da morte a coisa muda de figura. Durante parte considerável do livro, o narrador se agiganta e praticamente engole o restante (desenvolvimento e a continuidade da intriga, a elaboração de outros personagens etc.). Ou seja, em vez de existir um narrador que atua de forma relevante na construção de um todo que lhe é "superior", tem-se a impressão de que os eventos ficcionais acontecem apenas para justificar a exacerbada participação dele. No trecho derradeiro do texto, em que é apresentada a aproximação entre o violoncelista e a morte, a situação se "normaliza".

A questão fica ainda mais curiosa se se lembrar de uma velha briga de Saramago com os críticos literários a respeito da existência desse ser que aqui se vem chamando de narrador. Para ele, tal figura simplesmente não existe. Há apenas o "autor" e as suas intenções. Como ele escreveu em uma das inúmeras vezes em que comentou o assunto: "E me pergunto se a resignação ou a indiferença com que o Autor, hoje, parece aceitar a apropriação, por um Narrador academicamente abençoado, da matéria, da circunstância e da função narrativa, que em épocas anteriores, como autor e como pessoa, lhe eram exclusiva e inapelavelmente imputadas, não serão essa resignação e essa indiferença uma expressão mais, assumida ou não, e mais ou menos consciente, de um certo grau de abdicação de responsabilidades mais gerais (...) provavelmente, o leitor não lê o romance, lê o romancista, quanto ao narrador, se houver quem o defenda, que poderá ele ser senão a mais insignificante personagem de uma história que não é a sua".

Ao "assumir" uma posição e agigantar de tal forma a presença do narrador em As intermitências da morte, o autor indica que está de fato tentando assumir a voz ali; o que ele cria, contudo, é um curto-circuito no texto, que se torna caricato. Nem assim, contudo, a indiferenciação se realiza: este narrador continua existindo em seu plano próprio, mas com a peculiaridade de seu discurso ter se transformado numa paródia do discurso de quem o concebeu. Deve-se ainda notar que, se essa hipótese interpretativa for plausível, ela combina com o fato de que os romances de Saramago se aproximam cada vez mais do modelo das parábolas, de histórias que parecem existir para transmitir ao mundo uma mensagem. Ambas as constatações parecem indicar que, em nome daquelas "responsabilidades mais gerais", existe a intenção de assumir o controle de algo que, felizmente para os leitores e para o próprio escritor, ninguém consegue controlar.


texto publicado na Revista Entrelivros, coluna Toda prosa, janeiro de 2006.