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O laureado deste ano: Um narrador "saramágico"

Finalmente aconteceu o que muitos esperavam: um escritor português foi contemplado com o Prêmio Nobel de Literatura deste ano. Mais precisamente, José Saramago, que juntamente com o seu compatriota António Lobo Antunes tem figurado durante muitos anos entre os nomes mais invocados neste contexto.

Finalmente, dado que a rica literatura portuguesa deste século nunca foi distinguido com o Prêmio Nobel.

Este ano quem tirou a "sorte grande" foi o romancista, novelista, dramaturgo e ensaísta José Saramago. A contemplação de Saramago irá, provavelmente, contribuir para intensificar a rivalidade que existe entre os dois escritores.

Ambos gozam de muito boa reputação internacional. Os devaneios fantásticos de Saramago, no entanto, agradam mais ao público e são de leitura mais fácil do que as experiências de prosa barroca de Lobo Antunes. Sendo assim, resta-nos apenas felicitar os leitores interessados.

Saramago é, de fato, um narrador virtuoso, um artista de romances da mais alta categoria, que desvenda os problemas sociais e existenciais clássicos de modo compreensível e extremamente cativante. Com uma inclinação especial pela narração metafórica, que se aproxima do mundo dos contos de fadas, Saramago tanto elucida como reinterpreta muitos temas clássicos da literatura.

Fugindo à regra no que diz respeito ao Prêmio Nobel, Saramago não só é apreciado pelos críticos, mas é também lido em todo o mundo. Os seus livros estão traduzidos para cerca de 30 línguas.

No seu país é imensamente popular; os seus livros são publicados em edições de mais de cem mil exemplares. No entanto, o escritor, que se diz ateu e comunista, é alvo também de muita polêmica, especialmente depois de ter publicado a sua interpretação muito pessoal da vida de Cristo, intitulada O Evangelho segundo Jesus Cristo. A campanha hostil que durante algum tempo foi dirigido a Saramago em Portugal, não exclusivamente pela Igreja, foi um dos motivos que contribuíram para que fosse viver em Lanzarote.

José Saramago tem urna origem modesta. Nasceu em 1922, filho de camponeses do Ribatejo. Nada levava a crer que um dia viesse a tornar-se escritor, dado que os seu pais eram analfabetos.

Percorreu um longo caminho antes de se dedicar à escrita. Entre outras coisas, exerceu as profissões de serralheiro mecânico, torneiro e jornalista. Apesar de se ter estreado em 1947 com o romance Terra do Pecado, não publicou nenhum livro durante quase vinte anos alegando não ter nada para dizer, limitando-se a escrever crônicas de jornal e algumas poesias. Recusa-se, todavia, a fazer nova publicação do seu primeiro romance.

O seu reconhecimento como escritor deu-se em 1966, aos 44 anos, com a coleção de poesias Os Poemas Possíveis, para além da publicação de peças teatrais e de ensaios.

Só em 1977 foi publicado o primeiro romance, de uma série de oito, que serviu de base para a atribuição do Prêmio Nobel de Literatura deste ano. O romance Levantado do Chão, sobre a luta da população rural contra a ditadura neste século, teve sucesso imediato e veio a conquistar um público grande e dedicado.

Dois anos depois com Memorial do Convento, Saramago foi definitivamente reconhecido pelo público, tanto a nível nacional como internacional. Este romance de amor inspirado numa lenda desenvolve-se no Portugal do século XVIII, onde a ilusão e o realismo formam uma união fascinante. Saramago move-se frequentemente na fronteira entre a história e a ficção, entre o sonho e a realidade, entre o então e o agora.

O poeta Fernando Pessoa, provavelmente o maior escritor da literatura portuguesa do século XX, é invocado em dois romances de Saramago. A personagem principal em O Ano da Morte de Ricardo Reis, de 1984, é um dos muitos heterônimos de Pessoa, que escreveu poesias sob diversos nomes, todos com biografia própria. Saramago fez Reis sobreviver a Pessoa, que na realidade morreu em 1935, permitindo, desta maneira, que esta personagem vivesse durante a ditadura salazarista. Precisamente como ocorre nos outros romances do escritor, há um confronto permanente entre conceitos de identidade e de história. Nada é o que parece ser. Tudo poderia ser diferente.

Saramago escreve com uma alegria contagiante, a sua prosa flui como um nó de correntes fortes. Para além de possuir a autoridade óbvia do escritor, este sapientíssimo autodidacta é também um grande humorista e satírico que, apesar de não ser um romancista histórico no sentido lato da palavra, se move livremente entre diferentes épocas.

Na história de Saramago há espaço tanto para a verdade como para a ficção e para a mentira. Talvez seja esta a lição que o autor nos quer dar.

Os romances de José Saramago parecem normalmente ser fruto de caprichos repentinos. Como a simples palavra "não" pode alterar a história? É exatamente esta ideia que constitui o ponto de partida de História do Cerco de Lisboa, um romance no qual um revisor de textos, Raimundo Silva, insere um "não" numa obra histórica sobre o cerco de Lisboa, um acontecimento de dimensão praticamente mítica na história de Portugal.

O que aconteceria se os cruzados tivessem partido para a Terra Santa em vez de permanecerem em Lisboa para salvar a cidade dos sarracenos?

O que teria acontecido se de repente a Península Ibérica se separasse do resto da Europa ficando a flutuar no Atlântico? Pergunta Saramago no romance A Jangada de Pedra, de 1986.

E finalmente o que poderia ter acontecido às pessoas e à sociedade se todos repentinamente ficassem cegos? É o que Saramago se põe a imaginar na sua distopia aterrorizante Ensaio sobre a Cegueira.

Este aspecto lúdico é mais um elemento que faz de José Saramago um narrador tão expressivo e tão cativante; um artista mágico que com a sua varinha de condão escreve o que lhe vem à cabeça. Como poeta, Saramago é tão desconcertante como encantador. Resumindo: "saramágico"


Örjan Abrahamsson. Göteborgs Tidning, 9 de Outubro de 1998