Homenagens de todo o mundo
Como é que o mundo reagiu à escolha da Academia Sueca do vencedor do Prêmio Nobel de Literatura? O Dagens Nyheter telefonou a uma série de jornais, críticos literários e escritores.
Em Lisboa, a atividade era febril na tarde de quinta-feira no jornal de esquerda-liberal Público. O Diretor do jornal, que insistiu em falar em nome do jornal, sem exprimir a sua opinião pessoal, descreveu o jornal da sexta-feira: a primeira página e mais seis outras serão ocupadas por Saramago. E ainda mais está para vir nas edições do fim-de-semana.
Eurico de Barros, editor cultural do grande jornal Diário de Notícias, recebeu a notícia da atribuição do Prêmio a Saramago com um misto de sentimentos:
"Como cidadão português estou, naturalmente, satisfeito e orgulhoso, mas do ponto de vista puramente artístico o meu entusiasmo não é grande. Na minha opinião, apenas três portugueses contemporâneos são merecedores do Prêmio. Dois dos quais faleceram recentemente, os poetas Miguel Torga e Vergílio Ferreira, a terceira é a autora lírica Sophia de Mello Breyner Andresen. Como muitos outros neste país, tenho dificuldade em esquecer o passado estalinista de Saramago e o papel que desempenhou nos anos difíceis de 74-75, quando participou lealmente na tentativa dos comunistas de derrubar a democracia. Seria outra coisa se Saramago tivesse reconsiderado a sua posição política, mas ele é impenitente."
A investigadora de literatura da associação de estudantes da Universidade de Lisboa, Raquel Dias, comenta entusiasmada:
"Sentimo-nos atordoados e felizes. Todos perguntam "Já soube do que aconteceu? As estações de rádio anunciam apenas uma notícia, creio que esta situação vai permanecer por vários dias. Que grande honra para o nosso país e para a nossa língua! Pensavamos que na Suécia se tinham esquecido de nós. Aqui na Universidade os semblantes estão muito felizes, os estudantes adoram Saramago, mesmo os que não partilham as suas ideias políticas."
José Saramago é certamente merecedor do Prêmio, e quase que se pode ter a impressão de que a escolha é um regresso a uma ortodoxia literária. Mas não é, disse o responsável pelo setor literário do Fankfuter Allgemeine Zeitung.
"A escolha do saltimbanco anarquista Dario Fo teve um significado histórico na perspectiva da qualidade literária. A Academia não reviu a sua decisão. Se, de fato, quisessem fazer uma escolha por uma literatura ortodoxa , então escritores como Hugo Claus ou Jonh Updike teriam sido uma escolha muito melhor.
"Agora fica-se com a impressão de que Saramago foi escolhido por não ter recebido o Prêmio no ano passado - um motivo bem fraco. Mas temos que encarar a escolha do Prémio Nobel como ela é - um misto usual de deferência e acaso."
"Uma boa e genuína escolha", disse David Streitfelt, especialista na matéria do Prêmio Nobel de Literatura do Washington Post. "Pouco surpreendente. Saramago não é desconhecido por aqui, a despeito, por exemplo, de Hugo Claus." - Um vencedor de grande valor
"Oh great!!! Que bom, gritou Michael Specter do New Yorker, autor de um ensaio que foi alvo de grande atenção sobre a Academia Sueca e as respectivas controvérsias. "Diferenciando-se da atrocidade do ano passado, esta é uma escolha excelente. Saramago talvez seja conhecido por 5% dos leitores americanos. É um grande escritor. A Academia Sueca às vezes faz más e às vezes boas escolhas."
"A Academia Sueca tornou-se uma espécie de Nações Unidas da linguística e o Nobel da Literatura tornou-se mais um prêmio linguistico do que literário", disse Jean-Louis Ezine, crítico literário do francês Nouvel Observateur que regressou recentemente de uma viagem a Estocolmo, onde se encontrou com Sture Allén e com Kjell Espmark. De um modo geral premeia-se uma língua e uma cultura, e o fato de o Prêmio ter ido para Portugal, que há muito tempo foi ofuscado pela Espanha, é excelente. Mas há outro grande escritor português que é António Lobo Antunes".
Saramago é um vencedor de grande valor. Aqui, no entanto, não há muitas pessoas que tenham lido a sua obra", disse Shaun de Waal, crítico literário do Mail & Guardian, em Joanesburgo. Os portugueses na África do Sul não são especialmente interessados em literatura, e junto da população de expressão inglesa, a literatura de Portugal não tem uma posição forte. Mas, de qualquer modo, há traduções da obra de Saramago. Particularmente, achei que o romance O Evangelho segundo Jesus Cristo exige muito do leitor mas é uma obra muito interessante. A sua maneira de revolver um texto supostamente sagrado e alargar a narração sobre Jesus foi bem sucedida.
Na Índia, mesmo nos círculos literários da capital Nova Deli, Saramago é uma celebridade relativamente desconhecida. A responsável pelo departamento cultural de um dos principais jornais do país cala-se ao ouvir que José Saramago é o laureado deste ano. No momento seguinte pergunta como se soletra o nome.
Dagens Nyheter, 9 de Outubro de 1998.
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Uma escolha segura depois de alguns prêmios polêmicos
Com a escolha de José Saramago a Academia Sueca premiou uma obra literária que é apreciada por todos e que não será contestada por ninguém. Consegue, desta maneira, um prazo para tomar fôlego depois de algumas escolhas audazes e inesperadas nos anos 90, que apesar de contarem com a aprovação de muitos, não deixaram, simultaneamente, de despertar preocupações em círculos literários tradicionais. Estes círculos tiveram dificuldade em aceitar a escolha de Toni Morrison em 1993. O fato de a Academia premiar uma escritora americana, negra, feminista, que fazia ensaios fora dos limites literários estabelecidos, foi visto como uma manifestação de oportunismo. Morrison é, no entanto, muito merecedora do seu Prêmio vindo, inclusivamente, a corresponder às grandes expectativas que foram colocadas nela com o romance Paradise, publicado no último Inverno.
É evidente que a situação ficou muito pior com a escolha de Dario Fo no ano passado. Nos círculos literários da Itália o Prêmio de Fo foi praticamente considerado uma agressão social-democrata sueca à literatura italiana. Na Alemanha o Prêmio foi alvo de duras críticas e na França o Le Monde publicou um artigo em que o autor interpretava as escolhas de Morrison e Fo como sinais de que a Academia Sueca tinha perdido o discernimento em matéria literária e estaria com isso a comprometer seriamente a reputação internacional do Prémio Nobel de Literatura.
O interessante nessas reações, que também foram refletidas em parte da imprensa sueca, é a ênfase dada ao fato de a literatura de alta qualidade poder ser objetivamente identificada. Esta literatura de alta qualidade define-se por uma antiga estética de enredo modernista e constitui uma parte fundamental da herança cultural literária. Nesta tradição são ainda escritas obras de grande significado. No entanto, é nos poetas, que conseguiram libertar-se do academismo, que se encontra a renovação artística. Se a Academia não tivesse feito esta descoberta, a indiferença relativamente ao Prêmio Nobel de Literatura iria intensificar-se seriamente.
No tocante a Dario Fo, adicionou-se, obviamente, o tradicional desprezo literário pelos textos teatrais. A situação não ficou nada melhor com o fato de as peças de Fo serem populares e politicamente provocantes. Para além disso, o autor usava dialetos, improvisava e deixava uma grande parte da expressão a cargo do corpo e da linguagem dos gestos.
Com Saramago a Academia não corre o risco de tais reações. É um escritor do gosto tanto dos leitores como dos críticos. O que não tira o valor da escolha. Numa perspectiva de longo-prazo podemos constatar que a escolha do vencedor do Prêmio Nobel tem tido inúmeros exemplos excêntricos e a qualidade dos laureados tem variado, conforme a composição da congregação instalada no prédio da Bolsa de Valores. Mas nos anos 90 uma nova imprevisibilidade tem caracterizado a actuação da Academia.
Em virtude desta imprevisibilidade, deixa de ser possível a comparação dos autores, do ponto de vista da qualidade literária,, como acontecia anteriormente. Claude Simon (l985) tinha certamente um estatuto literário mais elevado do que William Golding (1983). Heinrich Böll (1972) foi um nome controverso entre os escritores de fama mundial Pablo Neruda (1971) e Patrick White (1973).
Este tipo de comparação de grandeza torna-se cada vez menos possível, devido a uma maior abertura do leque literário, o que não constitui qualquer problema para a Academia, cuja única função é nomear anualmente um escritor de grande mérito. Por outro lado, a dificuldade aumenta para os críticos e comentadores, aqui e no estrangeiro, que defendem a todo custo uma hierarquia de valores literários baseada em critérios estéticos ultrapassados.
Seria banal afirmar que não há possibilidade de fazer um campeonato mundial de literatura. O Prêmio Nobel estaria, no entanto, em perigo se esta fosse a opinião geral. Particularmente estou convencido de que a imprevisibilidade crescente da Academia Sueca serve mais para aumentar do que para diminuir o interesse em torno de um acontecimento que é indiscutivelmente o maior evento de relações públicas da Suécia. A atribuição do Prêmio Nobel de Literatura possibilita que, num mesmo dia, uma obra literária seja o alvo da atenção em todo o mundo.
Lars-Olof Franzén. Dagens Nyheter, 9 de Outubro de 1998
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A inspiração decorre da voz interior
Há pouco mais de um ano atrás entrevistei Saramago em Estocolmo. Naquela altura, o seu romance Ensaio sobre a cegueira tinha acabado de ser publicado em sueco. O local da entrevista foi muito frio e impessoal, uma sala de conferência do Hotel Sheraton, e o tempo estava cronometrado em minutos. No entanto, a frieza da sala desapareceu assim que Saramago começou a falar de modo intenso, mostrando a sua capacidade de prender completamente a atenção do seu interlocutor.
Saramago na ocasião tinha 75 anos. Falou dos seus livros, em particular do último, Todos os nomes, que agora no Outono será publicado em sueco. Eu tinha a ideia que uma obra literária deste quilate - quatro romances tinham sido traduzidos para sueco num período de apenas quatro anos - tinha de ter florescido durante uma longa carreira. Pergunto-lhe, então, sobre as suas primeiras obras. Sim, tinha começado cedo, disse-me Saramago, mas enquanto jovem não tinha muito para dizer.
"Se tivesse morrido aos cinquenta anos, com os romances que tinha até então publicado, ocuparia um lugar muito pequeno na história da literatura portuguesa.
A sua obra literária tinha quase toda surgido nos últimos quinze anos. O que é que aconteceu para além do óbvio que uma pessoa tem mais para contar aos 60 do que aos 25 anos?
A resposta a esta pergunta é o que melhor me recordo de toda a entrevista. Saramago disse que em 1980, quando estava trabalhando num romance na região em que nasceu no Sul de Portugal, começou subitamente a escrever de uma nova maneira. Não foi nada premeditado, veio como uma inspiração. Pela primeira vez o narrador apareceu no texto. Não como um "eu" e absolutamente não como o seu próprio eu, "mas como uma instância que cria a justiça, que lá está para separar o bem do mal". Uma voz em defesa da bondade, da compaixão, da honra e do bom senso. Uma voz em defesa da vida – que só quando a ouviu pôde escrever.
Madeleine Gustafsson. Dagens Nyheter, 9 de Outubro de 1998