O Nobel desembarca em Portugal
Até que enfim! As expressões de júbilo e de alívio correm, cruzam-se de uma margem à outra do Atlântico, entre Portugal e o Brasil, invadem as ilhas, Madeira, Porto Santo, Açores, Cabo Verde, pedaços de uma mítica Atlântica que hoje fala português. Estas felicitações entrelaçadas chegam a roçar a costa de uma África agora independente, mas sempre lusófona, embora com variantes crioulas, de Angola à Guiné-Bissau, até S. Tomé e Príncipe. Depois com um salto, tocam Moçambique no Oceano Índico e aproximam-se daquelas zonas de uma Ásia que, se já não é lusófona, conserva, num substrato cheio de tradições linguísticas e culturais, a memória de uma antiga presença. E chegam a comover finalmente a Galiza, região de uma Espanha hoje orgulhosa do seu plurilinguismo, em que o galego se conjuga estreitamente com o falar do Alto Minho. Um prêmio para a língua portuguesa.
O português José Saramago venceu pessoalmente e de pleno direito o Nobel. Mas sarou também uma ferida que existia há quase um século: de fato, o prêmio nunca tinha sido conferido a um autor deste bloco linguístico de mais de 200 milhões de habitantes, fosse ele português, brasileiro ou africano. E, no entanto, o universo lusófono orgulha-se de grandes tradições literárias, tanto em Portugal como no Brasil e conta com uma nova e impetuosa tradição de escritores africanos de expressão portuguesa. Esperávamos há muito tempo este momento. Esperamo-lo um dia para o velho rapsodo Jorge Amado e para poetas de elite como João Cabral de Melo Neto. Mas sobretudo para um escritor como ele, José Saramago, que há anos víamos como o candidato mais justo, mais prestigiado, mais nosso: e por quem sofríamos todos os Outubros, como quem espera confiante mas angustiado a chegada da sua mala na passadeira rolante do aeroporto, sem a ver aparecer. A sensação agridoce do ano passado, para nós, italianos, quando Dario Fo bateu sobre a meta o próprio José Saramago, tinha-nos deixado uma grande margem de esperança. A história do Nobel ensinou-nos pelo menos, como já nos tempos do prêmio a Octavio Paz, a jogar com as probabilidades.
Apesar do seu corpo impetuoso e longilíneo de adolescente, e o sorriso de quem aos 76 anos pensa num futuro laborioso e sereno junto a Pilar, a jovem mulher espanhola que o acompanhará a Estocolmo, mostrando ao mundo como pode ser belo um casal de intelectuais, Saramago, na sua longa vida teve, como toda a gente, alegrias e desilusões. Sobretudo no seu país.
Comunista militante, nunca faccioso, sempre crítico, nunca trânsfuga, teve que esperar pelo fim do salazarismo e pela revolução dos cravos, em Abril de 1974, para poder ascender de pleno direito à cena literária portuguesa e internacional. E foi imediatamente um sucesso, como se, à sombra da expectativa, tivesse afinado os seus instrumentos. Veio primeiro a poesia, com Os Poemas Possíveis (1966) e Provavelmente Alegria (1971) que, com o passar dos anos, revelam hoje toda a sua carga humana e profética: «Só Direi / Crispadamente recolhido e mudo, /que quem se calar quanto me calei / não poderá morrer sem dizer tudo» («Poema à boca fechada», in Poemas Possíveis). Depois apareceram as primeiras recolhas de crónicas: Deste mundo e do outro (1971), A Bagagem do viajante (1974), ensaios de escrita que contêm já em esboço todos os recursos da futura narrativa. Seguidamente o teatro (a começar por A Noite, 1979), que nos parece hoje em dia uma obra de um escritor «diferente», discursivo, referencial e polémico, tanto a sua invenção criativa é agora misteriosa, alusiva, poética.
A justificação do Nobel fala de um José Saramago «que com parábolas cheias de imaginação, compaixão e ironia, torna constantemente compreensível uma realidade fugidia». É esta, talvez, a melhor definição de uma obra que, não obstante a, inserção minuciosa numa época e num quadro ideológico, (a Lisboa inquisitorial de inícios de Setecentos, a Lisboa das origens, ainda dividida entre mouros e cristãos, os anos do franquismo e o seu contágio ao Portugal salazarista, a Palestina de uma Vida de Jesus na perspectiva do Homem), não surge nunca como a mera revisitação do fato histórico, mas sim como a sua parábola, como pretexto para a interpretação de um agora que filtra o passado com a estranheza do depois.
O novo Saramago, um intelectual em plena maturidade que viveu desde sempre em Lisboa, mas que, fora um pequeno círculo de amigos de trabalho e de tertúlia, poucos conhecem, irrompe de surpresa na cena literária portuguesa em 1980 com um romance singular que o coloca imediatamente na primeira linha entre os narradores nacionais. E é nesse Levantado do Chão, traduzido em Itália com o título Una terra chiamata Alentejo, que aparece, pela primeira vez, numa saga camponesa aparentemente de sabor ainda realista, o seu originalíssimo cunho estilístico. O «discurso oral» de Saramago, as suas páginas densamente povoadas de signos, sem maiúsculas nem pontuação, era, de fato, capaz de sugerir poeticamente, a partir da sonoridade das palavras mais que das suas letras, uma história nacional e individual: as vicissitudes de três gerações de camponeses do Alentejo, que, através da luta de classes, levantando-se do chão, assumem a posição vertical ao reconhecerem-se homens, e surgem como protagonistas de uma história que fora, até então, apanágio dos seus patrões.
A fama internacional virá logo depois, em 1984, com o Memorial do Convento que permanece ainda hoje o seu romance mais famoso e do qual partirá para uma viagem de escrita, para uma aventura narrativa que fará dele um escritor sem limitações regionais: um dos mais significativos narradores do nosso tempo. O Memorial conta a história da construção do Convento e da Igreja de Mafra, durante as primeiras décadas de Setecentos, erguido com extraordinária magnificência nos arredores de Lisboa, pelo querer do monarca absoluto D. João V. Romance histórico, pela minuciosa descrição da sociedade portuguesa, cortesã e popular, de inícios do século XVIII, pela sumtuosidade bárbara dos autos-de-fé promovidos por uma Inquisição ainda toda-poderosa, Memorial do Convento torna-se também um romance social, pela evocação daquela massa de operários braçais e de canteiros que eram parte constituinte dos materiais de construção da época. Mas transforma-se em romance de realismo fantástico pela invenção das personagens, antes de mais de Blimunda, filha de marrana de olhos claros e de belo nome germânico, que, não por acaso, um músico como Corghi escolherá para protagonista da sua recriação musical.
A partir deste momento, a inspiração de Saramago torna-se premente. O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984) passa-se numa Lisboa atingida pela vizinha guerra de Espanha; a permanência na cidade de um heterónimo de Fernando Pessoa, que sobrevive um ano à morte do poeta, é talvez a homenagem mais comovente à memória daquele que é hoje considerado o maior poeta do Portugal moderno. Assim como A Jangada de Pedra (1987) representa a saborosa e polémica profissão de fé anti-europeísta do português Saramago, a História do cerco de Lisboa (1989) é uma feliz correção da história, em nome da liberdade de interpretação.
Mas o Saramago que nos está mais próximo, para nós mais universal é, sem dúvida, o último. Aquele que, com o sofrido e humaníssimo Evangelho segundo Jesus Cristo (1991) suportou a incompreensão pátria, escolhendo então o caminho do exílio em Lanzarote, nas ilhas Canárias. E ainda o que, depois do afastamento voluntário de Portugal e da sua «realidade sonora», com a consequente imersão num universo de língua espanhola, todos havíamos temido uma redução da sensibilidade «auditiva»: indispensável, parecia-nos, à criação daquela «literatura oral» na qual se tinha materializado, até então, a sua invenção poética.
Mas Saramago viu mais longe que nós. E com as projeções brancas do seu romance Ensaio sobre a cegueira (1995), primeiro, e depois com Todos os Nomes (1997), recentemente editado também em tradução italiana, soube mergulhar-nos numa atmosfera de pesadelo e de sonho que a praxis acadêmica sugeriu que se definisse como kafkiana; serão estas as características que no futuro a ele ficarão mais ligadas, a sua fantasia, a sua humanidade, a sua capacidade de «ver» e, para além naturalmente de «ouvir», a sua peculiaríssima recriação «auditiva» da realidade circunstante. Saramago gosta da Itália, onde tem muitos amigos, onde as suas obras foram primeiro traduzidos, onde recebeu os primeiros prêmios literários. E para nós este Prêmio Nobel, longamente anunciado e finalmente atribuído, é como se fosse um prêmio para um criador nosso.
Luciana Stegagno Picchio. La Repubblica, 9 de Outubro de 1998