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O mundo é infinitamente cruel e sem engagement 

Os escritores não existem para salvar o mundo, diz José Saramago, o escritor português que ganhou, ontem, o Prêmio Nobel da Literatura. Contudo, não devem calar-se. Saramago é esquerdista «à antiga». Um comunista contra a corrente, que metralha todos com os seus ideais para um mundo melhor.

Falar de literatura não é com o vencedor do Prêmio Nobel da Literatura. Prefere deixar isso aos outros, para ele poder elucidar os problemas do mundo «real», participar nos debates políticos e defender pontos de vista que já estão «fora de moda».

«Tenho cada vez menos vontade de falar de literatura», repetiu Saramago, por várias vezes, durante a conversa que tivemos há umas semanas. Aceitou falar sobre a filosofia por trás da sua obra, caracterizada, como ele diz, por uma «preocupação humana, talvez até humanística», mas sempre que vê uma possibilidade de mudar o assunto da conversa para, vá lá, a democracia europeia, a situação em África ou a crise da esquerda, não hesita um segundo.

Saramago vive longe do nosso mundo, na ilha espanhola de Lanzarote. Aqui, o escritor de 75 anos dedica-se de corpo e alma à literatura, cuja presença trespassa pela casa. Até o seu cãozinho se chama Camões, em memória do Homero português.

Esse isolamento, todavia, e só aparente. Mais do que uma torre de marfim, Lanzarote, para Saramago, é uma base de ataque, donde prepara os seus passeios para os mais variados palcos em todo o mundo. Palcos donde bombardeia o seu público com opiniões muito explícitas sobre a «situação no mundo», opiniões que nem sempre são bem recebidas.

Na semana passada, ainda perturbou um congresso meio adormecido de filosofia, em Espanha. Pelo espanto da assistência, não deixou pedra sobre pedra da imagem da conquista da América do Sul como encontro de culturas, tão cara aos pensadores ibero-americanos: a Europa, segundo Saramago, conquistou um lugar no novo continente através da violência, roubo e repressão.

José Saramago é de esquerda, ou melhor: é um comunista contra a corrente. Não pensa nem remotamente em desistir dos seus ideais de uma sociedade mais justa, mesmo se o pensamento comunista já foi deitado para o lixo e a propagação de ideias de esquerda já não é visto de bom grado.

«Se aceitássemos a hipótese de que já não há lugar para a esquerda», disse durante a nossa conversa, «o que é que então nos restaria? Para onde iria o mundo? Para uma crueldade sem fim, onde a única lógica seria a do dinheiro».

Dizem as más línguas que Saramago poderia ter ganho o Prêmio Nobel muito antes, se tivesse deixado de dar azo às suas ideias de esquerda. O escritor conhecia a história, que achou engraçada, e respondeu que não trocaria as suas ideias «nem por todos os Prémios Nobel do mundo». Afinal, não precisou de fazê-lo: até um comunista civilizado pode ganhar um Prêmio Nobel.

Durante a maior parte da sua vida, a ideia de ganhar qualquer prémio literário era completamente impensável. Só escreveu o seu primeiro romance, Levantado do chão, em 1979, quando tinha 57 anos. Nos anos seguintes, contudo, perturbou a «harmonia e ordem estabelecido do Portugal literário» com uma série de livros. «Nunca me perdoaram isso».

Saramago nasceu em 1922, duma família de camponeses pobres, que se mudaram para Lisboa poucos anos depois. As escassas finanças não lhe permitiram estudar e o único diploma que obteve foi o de serralheiro mecânico; durante anos, trabalhou como funcionário público e numa agência de publicidade.

Em 1969, juntou-se ao Partido Comunista português. Depois da revolução dos cravos de 1974, que pôs fim à ditadura em Portugal, foi editor principal do jornal Diário de Notícias. Saramago foi despedido na sequência da contra-revolução, que também deixou marcas na comunicação social.

Em contrapartida, o despedimento salvou-o para a literatura. Desempregado, resolveu tentar a sua sorte na literatura. Nos anos quarenta, já tinha escrito um romance, mas não gostou do resultado. Depois disso, só tinha publicado dois livros de poesia.

O grande êxito começou com o Memorial do Convento (l982), um romance sobre o rei português D. João V (l689-1750), que mandou construir o maior convento do mundo. O estilo exuberante do livro e a mistura de ficção e fatos históricos induziu os críticos a fazer comparações com o realismo mágico de Gabriel García Márquez.

Em 1985 publicou O Ano da Morte de Ricardo Reis, um livro sobre Lisboa, vista por um dos heterônimos do grande poeta Fernando Pessoa. No romance A Jangada de Pedra (l986) o escritor imaginou literalmente a separação de Portugal e Espanha da Europa, uma imagem para evocar as imensas diferenças culturais de ambos os lados do Pirineus.

Em 1991 apareceu O Evangelho segundo Jesus Cristo, uma visão muito própria sobre a vida de Jesus, que causou grande agitação no Portugal católico. O livro foi nomeado para o Prêmio Europeu da Literatura, mas o Secretário de Estado da Cultura retirou o livro pessoalmente da lista. Saramago ficou tão desgostado com este «regresso da Inquisição» que virou costas a Portugal e mudou-se para Lanzarote.

O Ensaio Sobre a cegueira, recentemente traduzido para holandês, é um romance que caracteriza bem tanto o lado humano como o escritor em Saramago («Eu não faço distinção entre os dois, onde vai um, vai o outro»). Neste livro, os homens perdem a vista um a um, e Saramago mostra como a luta cega pela sobrevivência os faz degenerar num ápice, transformando o mundo num lugar infernal.

Apesar do seu engagement, Saramago detesta os escritores que usam a literatura para fins panfletários. «Não acredito que o escritor seja um engenheiro da alma, como afirmou Estaline: mais absurdo não há. Tampouco acredito que o escritor tenha de ser infiltrante da alma, como disse um dos slogans do Partido Comunista da China. Não sou nem engenheiro nem infiltrante. O Homem tem de construir a própria alma».

Os escritores não existem para salvar o mundo, diz Saramago. Mas não podem calar-se e aproveitam o fato de serem ouvidos, de lhes prestarem atenção.

«Não faz sentido», disse Saramago, «se um escritor aparece num jornal para dizer quanto é bom, quanto bem é que escreve, quantos livros já escreveu, quanto bem dizem os críticos. É preciso dizer algo mais».

Agora que ganhou, como primeiro escritor de língua portuguesa, o Prêmio Nobel da Literatura, Saramago terá de conformar-se com a ideia que vai ser obrigado a falar justamente dessas coisas. Que vai ter de falar, contra a própria vontade, sobre literatura. Mas não deixará escapar nenhuma oportunidade para mudar de assunto e falar do seu tema preferido: por que razão o mundo vai mal e como podemos melhorá-lo.


Cees Zoon. de Volkskrant, 9 de Outubro de 1998