O nobel em português
Depois de anos de expectativa, José Saramago é o escolhido pela Academia Sueca
"Antes eu dizia: 'Escrevo porque não quero morrer'. Mas agora mudei. Escrevo para compreender. O que é um ser humano?"
À1 hora da tarde da última quinta-feira, o escritor português José Saramago encontrava-se na sala de espera do aeroporto de Frankfurt. Ele tinha viajado até a cidade alemã, palco do maior evento editorial do mundo, a Feira do Livro de Frankfurt, como representante da literatura de seu país. Encerrados os compromissos, preparava-se para voltar para casa, nas Ilhas Canárias, onde vive desde 1992 com sua mulher, a jornalista espanhola María del Pilar. Ele sabia que naquele exato momento, em Estocolmo, o secretário-geral da Academia Sueca, um lingüista chamado Sture Allen, deveria estar dando início a um antigo ritual. Ele deixaria seu escritório e caminharia até um salão de gala. Diante de uma platéia lotada de jornalistas, anunciaria o Prêmio Nobel de Literatura. Há mais de nove décadas esse é um momento aguardado com ansiedade por romancistas, poetas e dramaturgos de todas as latitudes. Mas, desta vez, Saramago decidiu não se preocupar com a ocasião. "Sou apenas uma hipótese", ele aprendera a dizer quando a conversa se dirigia para o prêmio. Estava escolado por várias decepções sucessivas. Nos últimos quatro anos, muita gente havia apostado em seu nome para receber a honraria. Só que a expectativa jamais se confirmava. E, assim, lá estava ele, aguardando um vôo, quando as primeiras notícias chegaram via rádio e televisão: José Saramago era o primeiro escritor de língua portuguesa a ganhar o Nobel — e o milhão de dólares que vem com ele. O autor de belos livros como Memorial do Convento e A Jangada de Pedra resolveu que a melhor atitude era dar meia-volta e retornar à Feira do Livro, onde seus editores internacionais deveriam estar preparando alguma espécie de comemoração. Naquela mesma tarde, ele diria aos amigos que a caminhada pelos corredores desertos do imenso aeroporto de Frankfurt, sabendo que havia alcançado o ponto culminante na carreira de qualquer escritor, comporia para sempre um dos momentos mais estranhos e solitários de sua vida.
Embora seja o mais celebrado dos prêmios literários, o Nobel está muito longe de ser imune a críticas. O lema da Academia Sueca — "Snille och Smak", ou seja, "Talento e Bom Gosto" — nem sempre é seguido à risca por seus membros. São notórias as omissões. O inglês Graham Greene e o russo Vladimir Nabokov morreram sem receber o prêmio. Isso, sem mencionar o francês Marcel Proust e o irlandês James Joyce, provavelmente os mais influentes escritores do século XX. Ao mesmo tempo, nomes quase esquecidos, como o poeta francês Sully Prudhomme (que derrotou Leon Tolstoi), foram agraciados, assim como o dramaturgo e ator italiano Dario Fo, que os críticos já compararam ao comediante Jerry Lewis, mas nunca a um escritor de importância. Dario Fo venceu no ano passado. Ele também compareceu à Feira de Frankfurt para uma entrevista coletiva, usando camisa cor de abóbora e um lenço extravagante. Como a feira de 1997 tinha Portugal como país-tema, lá estava Saramago, e os dois autores se encontraram para uma sessão de fotos. Era difícil não pensar que uma injustiça havia sido cometida. Fo é um dos equívocos do Nobel. Já Saramago é um grande escritor e, no que diz respeito à língua portuguesa, talvez seu maior romancista vivo. Segundo um artigo recente da revista americana The New Yorker, até mesmo os suecos reconhecem, nos bastidores, que preferir Dario Fo foi uma espécie de piada ou loucura. Devidamente corrigida agora.
"Lésbica da Ásia" — Criticam-se muito as escolhas de Estocolmo dizendo que elas são inspiradas em bom-mocismo político. Diz a lenda, por exemplo, que o argentino Jorge Luis Borges caiu em desgraça ao aceitar um galardão de Pinochet, o ditador chileno. Historicamente, as simpatias da Academia Sueca tendem para a esquerda e, nos últimos anos, teriam dado mais valor ainda aos clamores das minorias e aos "esquecidos". "Hoje em dia, o candidato ideal para um Prêmio Nobel seria uma lésbica da Ásia", diz, no já mencionado artigo da New Yorker, o crítico literário sueco Mats Gellerfelt, um dissidente da Academia. À primeira vista, Saramago se encaixa no perfil politicamente correto. Filiado ao Partido Comunista na década de 60, ele se afastou da militância nos últimos tempos, mas ainda carrega a carteirinha vermelha no bolso do paletó. Seria um erro crasso, no entanto, reduzi-lo ao estereótipo do escritor engajado. Ele é no máximo um comunista que escreve — e bem.
Penetrar no universo de José Saramago não é fácil. Seus romances têm ação lenta, as frases são longas, os parágrafos se esparramam por várias páginas, os diálogos irrompem no meio da narrativa introduzidos apenas por vírgulas. Quem vence essas dificuldades iniciais e se adapta ao estilo do autor é largamente recompensado no final. Ao anunciar o Nobel, a Academia Sueca disse que a obra de Saramago oferece "parábolas sustentadas por imaginação, compaixão e ironia, tornando-nos capazes de apreender uma realidade fugidia". Empolado, como tudo que sai de uma academia. Mas a definição faz sentido. Os livros de Saramago não se encaixam na vertente realista. Não se restringem a historinhas e intrigas. Sempre remetem a algum outro plano de interpretação. Assim, por exemplo, Ensaio sobre a Cegueira não se limita a narrar, com humor selvagem e quase surrealista, um episódio bizarro em que todos os habitantes de uma cidade são acometidos de uma doença misteriosa, que lhes tira o poder de enxergar. O romance é também uma alegoria sobre razão e insanidade, ordem e caos. Lidar assim com temas tão amplos — "as grandes questões do ser humano", como costuma dizer Saramago — é um risco para qualquer escritor. O perigo de cair no vácuo, no blablablá grandiloqüente, é difícil de contornar. Saramago, entretanto, se move com desenvoltura. Controla suas metáforas e as explora até as últimas conseqüências.
Em seus vários livros, Saramago consegue penetrar diversas camadas da expressão literária em português. Memorial do Convento, que o próprio autor já descreveu como um "grande rio", surpreende por seu uso da dicção barroca, suas frases caudalosas, suas idas e vindas. Em obras mais tardias, essa exuberância de pregador, à moda de um padre Vieira, é domada em favor do texto lacônico, mas ainda assim sutil. Fora do universo português, os últimos livros de Saramago fazem pensar no checo Franz Kafka. Ele é, aliás, o grande ídolo de Saramago, o artista que ele considera fundamental entre todos os que escreveram no século XX. O discípulo não está assim tão longe do mestre.
"Visão anti-religiosa" — Embora seja um dos últimos defensores do regime comunista na face da Terra, a literatura de José Saramago não tem uma vertente política pronunciada. O escritor conseguiu ser mais polêmico ao tratar de temas religiosos. Foi chamado de sacrílego por causa do maravilhoso livro O Evangelho segundo Jesus Cristo, em que humaniza o Cristo. Por causa dessa obra, o jornal L'Osservatore Romano, do Vaticano, criticou, na semana passada, a escolha do novo Prêmio Nobel de Literatura. Segundo o jornal, O Evangelho... "dá testemunho da visão essencialmente anti-religiosa do escritor". Paradoxalmente, ao menos na superfície, esse foi o livro de Saramago que mais vendeu no Brasil, maior país católico do mundo.
Embora escreva num idioma que dificulta sua projeção internacional, o português, José Saramago, traduzido em mais de vinte línguas, é reconhecido nos meios literários da Europa e dos Estados Unidos como um dos grandes do século. Há exceções, claro. O crítico literário da revista Time, Paul Gray, reagiu à premiação com um comentário sarcástico: "Tenho resenhado livros toda a minha vida e nunca ouvi falar dele". A frase diz menos sobre Saramago do que sobre o crítico da Time. Mas para o grande público, fora dos países de língua portuguesa, Saramago é mesmo um escritor pouco conhecido. Essa é uma das coisas boas do Nobel. O prêmio confere notoriedade imediata a seu ganhador e, segundo os mais otimistas, pode ajudar a divulgar a tradição literária em que ele se inclui. Até hoje isso não se verificou — mas, pelo prestígio de que goza junto à crítica internacional, Saramago é sem dúvida mais adequado como embaixador da língua do que os brasileiros Jorge Amado e João Cabral de Melo Neto, outros escritores em português cotados para o Nobel.
Nascido em 1922, numa aldeia chamada Azinhaga, o autor de O Evangelho segundo Jesus Cristo deveria chamar-se apenas José de Sousa. Saramago, nome de uma plantinha silvestre meio desenxabida, era o apelido que os vizinhos davam a seu pai. No momento de registrar a criança, porém, o funcionário do cartório achou por bem acoplar a alcunha ao nome. E assim ficou, José de Sousa Saramago. Aos 2 anos ele se mudou com a família para a capital, Lisboa. Nessa idade também perdeu um irmão, Francisco, que assumiria um papel importante, várias décadas mais tarde, em sua carreira de escritor. Foi ao procurar o atestado de óbito de Francisco em várias repartições da burocracia portuguesa que Saramago atinou, pela primeira vez, com as idéias que levariam a seu mais recente romance, Todos os Nomes, lançado no ano passado no Brasil.
A família de Saramago era pobre. Tinha origem camponesa e poderia ser chamada hoje em dia de "sem-terra", como observou ele. Por falta de dinheiro, o futuro escritor nem chegou a completar o ginásio, ou "curso liceal", como diriam os portugueses. Aprendeu o ofício de serralheiro mecânico e arranjou seu primeiro emprego em uma oficina de carros. Ele gosta de lembrar que, até os 20 anos, não possuía nenhum livro. Tudo que lia tomava emprestado de bibliotecas públicas. Nesse período, começou a ensaiar uma estréia na literatura, que ocorreu em 1947 com o romance Terra do Pecado. Esse livro, que acaba de ser reeditado em Portugal como espécie de curiosidade biográfica, até que não era ruim, mas também não chegou a fazer sucesso. Saramago teve a impressão de que nada tinha a dizer e ficou em silêncio por quase vinte anos, durante os quais exerceu a atividade de crítico literário. Só retomou a caneta em 1966, publicando uma coletânea de versos, Os Poemas Possíveis. Seguiram-se a entrada para o jornalismo, uma reunião de crônicas, outra de artigos.
Em 1975 ocorreu a grande guinada na vida de José Saramago. Na época, aos 53 anos, ele trabalhava como diretor adjunto do jornal Diário de Notícias. Havia pouco mais de um ano, Portugal tinha encerrado, com a chamada Revolução dos Cravos, seu longuíssimo período de ditadura política. Os planos da esquerda pareciam ir de vento em popa quando um grupo de militares resolveu pisar no freio e "normalizar" o país. Eles intervieram também na imprensa e puseram na rua toda a equipe do Diário. Em vez de entrar em pânico, Saramago aceitou o desemprego. Deixou fermentar o talento que o transformaria no mais popular romancista de seu país. "Foi em 1980 que eu me tornei um escritor de verdade", afirma ele em todas as suas entrevistas. Nesse ano, saiu o romance Levantado do Chão. Dois anos mais tarde surgia Memorial do Convento, que, do dia para a noite, faria dele uma celebridade e consolidaria seu estilo inconfundível. O colombiano Gabriel García Márquez, autor de Cem Anos de Solidão, costuma dizer que a melhor coisa de ganhar o Nobel é que o escritor não precisa mais pensar nisso. No caso de Saramago, preterido tantas vezes, essa frase é particularmente adequada.