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Romancista da Condição Humana

No colóquio sobre o romance, realizado em 1970 na Universidade de Estrasburgo, o chamado "novo romance" esteve praticamente no centro dos debates, mas, como seria de esperar, nenhuma alusão foi feita ao "novo romance" em língua portuguesa, nem a José Saramago, que, àquela altura, já o havia criado em dimensões originais, para além das simples manipulações de estrutura que haviam caracterizado o protótipo francês. O romance tradicional, declarou então M. Mansuy, "já não consegue satisfazer plenamente, pois sua montagem se mostra cada vez mais convencional".

Ocorria, entretanto, que, já então, o "novo romance" satisfazia cada vez mais enquanto "aventura de uma narrativa", tornando-se tão rotineiro e tedioso quanto a "narrativa de uma aventura" que pretendera substituir. A esse propósito, observei, em 1986, que o novo romance era mau romance, fosse qual fosse o seu interesse como exemplo de experimentalismo narrativo. Nessas perspectivas, acrescentei, "pode-se imaginar que, dez ou 15 anos depois, outro colóquio sobre o mesmo tópico já não tomaria o novo romance como divisor de águas, mas é presumível que ainda se referisse a Balzac ou Dostoievski, Proust ou Thomas Mann, Machado de Assis e José Saramago (a supor que, realizado na França, pudesse superar o provincianismo característico do espírito francês)."

Tendo conferido o Prêmio Nobel ao "novo romance" francês em 1980 (mas não a Robbe-Grillet, que seria o candidato natural), a Academia Sueca distinguiu finalmente, na pessoa de José Saramago, a literatura de língua portuguesa. Ele é, de fato, um dos romancistas universais de maior estatura. Do "Memorial do convento" a "Todos os nomes", passando pelo "Evangelho segundo Jesus Cristo" e "Ensaio sobre a cegueira", Saramago não apenas renovou a temática do romance português, como as suas técnicas estruturais, para nada dizer do extraordinário estilo literário propriamente dito: é, na linhagem de Malraux (candidato permanente e infeliz ao Prêmio Nobel), o romancista da condição humana. A condição humana vista pelo prisma histórico e sociológico de Portugal. O indivíduo é, nos seus romances, uma parte da engrenagem social, não o personagem idiossincrásico que tradicionalmente povoa a ficção.

Ele é o homem que faz do homem uma "idéia política" (no sentido aristotélico da palavra), com prolongamentos ideológicos e até partidários. Nesse particular, sua visão denuncia algum ressentimento irônico contra o mundo tal como existe. Isso o leva, por vezes, do realismo de observação às alegorias fantasiosas, se não nostálgicas, como no destino metahistórico que imaginou para a Península Ibérica. Lembre-se que é adversário da União Européia, desejando que as terras ibéricas dela se desligassem por qualquer incorrigível cataclismo tectônico.

No sistema orográfico do romance português, ele é o pico isolado e de maior altura - inacessível para os alpinistas de fôlego curto. É uma literatura, a portuguesa, que vive em simbiose consigo mesma, que se alimenta da convivência e da via literária, das relações e dos antagonismos pessoais, quadriculada em grupos endogâmicos. Fazendo residência numa ilha, ele propõe, por assim dizer, a metáfora da própria extracontinentalidade, numa espécie de arrogante, mas também nostálgico, desafio.

Recebendo agora o Prêmio Nobel, a vingança se completa para um escritor que já lhe viu negada pelo Governo do seu país uma pequena honraria nacional - e o homem que reivindica o próprio esquerdismo mais como atitude, creio eu, do que por convicção, terá encontrado na religião profana do comunismo o que lhe compensasse o ateísmo de ordem espiritual. Vai receber o prêmio burguês por excelência presumivelmente com um discurso revolucionário - o prêmio, justamente, que estabelece o território da grande burguesia literária.



Reportagem de Wilson Martins. Jornal O Globo. 9 de Outubro de 1998.