José Saramago é o Suco da Barbatana da Língua Portuguesa
Com prazer a todos, ou quase todos, nos chega a notícia de que José Saramago acaba de receber o Nobel de 1998
Em primeiro lugar, frise-se que esta é uma novidade relativa: há muito vem-se comentando que o prémio deveria ser dado a algum escritor da nossa língua, a cujas instituições - triste herança dificilmente superável - falta vontade política e a cujas intelectualidades, em ambos os lados do Atlântico, um pouco mais de sprit de corps (especialmente considerando-se o crescente distanciamento literário entre Portugal e o Brasil).
O Nobel, que é o prémio mais visível do mundo, trata-se por isso mesmo de uma coisa tanto política quanto literária; quem tem alguma dúvida, que compare o desempenho internacional de nossa língua com aquele de nossos «hermanos», que já foram galardoados muitas vezes.
Em segundo lugar, já há alguns anos esperava-se que José Saramago - com sua poderosíssima prosa de ficção e seu talento plenamente europeu, escudado por boas traduções para as línguas centrais do ocidente e apoiado por muitos descontentes com a chamada globalização (entre os quais, as esquerdas de ontem e de hoje) - passaria a ser o «primeiro da fila» entre aqueles que escrevem em português.
Em boa hora, portanto. Não foi fácil furar o muro de desinteresse com o qual a língua portuguesa tem que se deparar, por um lado desvalida do empenho e/ou da capacidade de promotores (e até de leitores) e, ainda assim, ou por isso mesmo, sujeita a periódicas febres de picuinhas domésticas, e por outro obnubilada pela sombra hispânica - de novo, não nos enganemos: lá fora, infelizmente, a tendência é que o português venha a ser estudado «depois» do espanhol, por aqueles que se tornarão nossos tradutores e críticos literários; daí muitos ficarem pelo caminho.
Vale mencionar que Saramago não lutou sozinho, e nem lutou por isso: a dimensão de sua luta básica, a de conquista de sua própria expressão literária, pode ser dada pelo prolongado do seu processo de amadurecimento como autor.
De facto, 30 anos foram consumidos entre a publicação do seu primeiro (e fraco) romance, Terra do Pecado, em 1947, e o seu segundo, Manual de pintura e caligrafia.
Nesse longo espaço de tempo, Saramago, cujo único diploma é o de técnico-electricista, exemplar e autodidacticamente cresceu em termos literários, experimentando muitos géneros: poesia, teatro, crónica e crítica (sobre esse percurso, escrevi uma tese, já publicada em livro: José Saramago: o Período Formativo), sobrevivendo como jornalista e tradutor.
Em resumo, o escritor português, que só começou a ser bafejado pelo sucesso de crítica e de público depois da publicação, em 1980, de Levantado do chão, disciplinada e pacientemente construiu a sua firmeza.
Num mundo que parece ter perdido o sentido comum, e no qual tudo parece voltar-se para o binómio consumo e mercado, esse empenhamento fundamental não pode deixar de ser admirado. Os frutos que advieram disso não foram poucos. Se, nos géneros literários que desenvolveu ao longo de seu período de formação, José Saramago não ultrapassou, salvo raros momentos, uma singular mediania, o conjunto de romances escritos nos últimos 20 anos coloca-o directamente entre os mais importantes e fecundos escritores da língua. Nesse âmbito, a obra de Saramago incessantemente «fala» com a seus antecessores: sua preocupação com a história, num momento no qual cassandras decretam-lhe o fim, remete a um Alexandre Herculano; sua dicção, baseada num tom despiciendo e digressivo, remete à de Almeida Garrett, seu cuidado com a forma do romance, cada vez mais depurada, remete a Eça.
Em poucas palavras, Saramago está firmemente ancorado em sua tradição doméstica, do qual é prova o seu longo encantamento com a palavra barroca - que, de facto, parece ter diminuído em seus últimos romances -, no qual revelam-se as suas leituras de clássicos como os oradores religiosos António Vieira, Manuel Bernardes e António das Chagas, e ao que se soma a incorporação, tanto em nível da anedota como da escritura mesma, dos maiores poetas portugueses, Camões e Pessoa.
O prémio a Saramago vem num ano significativo para Portugal; há exactos cinco séculos Vasco da Gama culminava o périplo africano que os portugueses tinham começado cem anos antes e faria terra em Calecute.
O efeito foi sentido em toda a Europa. Nós, por exemplo, não existiríamos sem isso, e provavelmente nos expressaríamos em outra língua que não esta.
Sem dúvida, essa efeméride terá sido considerada pelo comité do Nobel, para outorgar o prémio a um autor português.
Mas isso nada valeria sem o peso específico, o talento e o empenhamento daquele que, quase unanimemente, é considerado o maior narrador vivo da língua portuguesa - e um dos maiores da Europa.
Por mencioná-la, José Saramago dirige-se a uma Europa que não quer reduzir-se a cifras e a metas, fala de um mundo áspero e periférico e o faz numa língua burilada e culta.
Seus romances são cada vez mais exigentes, mais autoritários para o leitor, e parecem escritos tanto a conta corrente do universo light da pós-modernidade mercadológica, como dos experimentalismos que caracterizaram a Alta Modernidade internacional.
Em resumo, testificam um grande escritor, dono de um universo e um estilo próprios.
Tudo isso lhe garantiu o Nobel. Num cenário literário até certo ponto deliquescente, responsável pela entrega do prémio a escritores menores, mas que se expressam em línguas centrais, o facto de Saramago ter sido o escolhido para receber o primeiro Nobel da língua portuguesa nos dignifica a todos os que a compartilhamos.
Os chineses, para referir-se a algo excepcional, remetem à sua iguaria quintessencial, a sopa de barbatana de tubarão.
Pois bem, José Saramago é o suco dessa iguaria, suco da barbatana de uma língua que cruzou os mares.
Horácio Costa (especial). Folha de S. Paulo, 10 de Outubro de 1998.