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O português premiado


O Prêmio Nobel de Literatura já foi conferido por duas vezes a autores de língua grega - Giórgios Seferis e Odysseas Elytis - um dos veículos do pensamento ocidental, mas hoje de curso muito limitado fora de seu território de origem.

No ano passado, a honra coube (pela terceira vez) a um autor de língua italiana, idioma também de escassa difusão pelo mundo.

Com José Saramago, o premiado deste ano, a consagração vai para o universo de mais de 200 milhões que têm o português como sua língua, espalhado por quatro continentes.

Esse reconhecimento tardio tem razões que não cabe aqui discutir, quer se trate do autor, com uma obra iniciada em 1947 e com traduções em cerca de 28 idiomas, quer se trate do meio de expressão, aparentemente ignorado na longa existência do Prêmio Nobel de Literatura. Mas se constitui certamente num estímulo para preservação, actualização e aprimoramento do mais profundamente humano de todos os patrimônios, a língua, correlativo perfeito e constante do pensamento.

Não é, com efeito, à toa que as regras do escrever e falar são, universalmente, as próprias regras do pensar. A mesma lógica é a referência de ambas.

Esse predicado, os gênios da literatura o exploram até o limite do possível. Limite, ademais, cada vez mais difícil de se fixar, dada a dinâmica de ambos, do pensamento e da língua. Quando se fala de criação literária, não é força de expressão. Os grandes da literatura fazem do instrumento de comunicação, que é a língua, instrumento também - e contagiante, provocador - de invenção e de reflexão.

Eis por que, embora reconhecendo-a como procedente, Saramago não se mostrou conformado com a etiqueta de barroca, aplicada à sua literatura. Em entrevista concedida ao Estado, emendaria com suas reticências: «Reduzir um estilo a uma etiqueta não é nada bom. Parece que fica tudo dito, mas no fundo o principal permanece de fora».

Ele está chamando a atenção para o risco de se expor a uma consideração superficial a obra de ficção.

No seu caso, o cerne de toda uma obra literária. Porque a ficção de Saramago não é a fuga para a fantasia, por mais fatigante que seja. Nem, à maneira romântica, o refúgio no subjetivo.

Seu interesse pela história, pelo legado cultural português - em que ele inclui, apesar de se professar incréu, o cristianismo - e pela contemporaneidade exclui essas hipóteses. Talvez seja mais adequado alinhar seu género com o das utopias, que jamais aceitam como facto consumado o que é dado como tal pela sociedade; como verdade única, o que é de aceitação generalizada. Na história documentada, por exemplo, nada o satisfaz: «Claro que não se deve ter ilusões: a grande história completa não se saberá nunca».

O prêmio dado a Saramago é gratificante para essa comunidade de povos que tem no português seu principal instrumento de relacionamento. Como disse Lygia Fagundes Telles, evocando Fernando Pessoa, «a língua portuguesa é minha pátria». Pátria, aí, no sentido mais amplo e mais rico de um projeto de civilização. Portugal o trouxe consigo, ao se lançar à busca de novos mundos. Esse projeto é, hoje, completamente outro do que era então; mas não se perde de sua grande referência, a língua.


O Estado de S. Paulo, 10 de Outubro de 1998.