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A segunda vida de Francisco de Assis
Teatro, 1987


Capa da edição portuguesa de A segunda vida de Francisco
de Assis



























Além desta peça editada em Abril de 87 e representada no mesmo ano, José Saramago escreveu e viu encenadas A Noite, em 1979, e Que farei com Este Livro?, em 1980. Trata-se, pois, do caso não muito frequente entre nós de um autor cuja escrita teatral é coeva da actualização cénica. As consequências são evidentes: os momentos históricos da produção e da recepção coincidem, os meios de actualização da peça são por ele pedidos e não a ela adaptados.

Julgará o leitor, pelo título, que a ficção nesta peça parte da vida de São Francisco de Assis e, deste modo, que entre si e essa ficção existe uma distância histórica que o torna mero observador de um quadro exemplar. No entanto, é o próprio título a fornecer indicações fundamentais da peça: a vida de que se irá falar não é a que conhecemos; Francisco de Assis, seu herói, não é ainda o santo.

Trata-se de um teatro de ideias sustentado por um ténue fio de intriga, ao longo do qual se revela sempre mais interessante seguir o debate, a troca de palavras do que os conflitos psicológicos das personagens, sumariamente caracterizadas em função da sua adesão ou rejeição da regra franciscana, ou até do que esperar alguma nova situação dramática. Por vezes se comenta, aliás, a função das palavras, e a evolução dramática faz-se graças à questionação e transformação quer do seu uso - pobreza, por exemplo - quer de fórmulas ou aforismos. "GIL - As palavras é o que têm: se não temos cuidado, tornam-se num falar por falar" (p.13) e, noutro passo, "FRANCISCO - Uma companhia forma-se companhia, a própria palavra o está a dizer. PICA - Certas palavras perderam os seus significados. Entretanto não faltam por aí palavras ou que as usam como se pusesse disfarces" (p.28). Do mesmo modo, é notória a intenção, que se vai acentuando com cada novo confronto verbal entre Francisco e Elias, representantes dos valores antagónicos de que nos fala a peça - pobreza e riqueza - de, utilizando as mesmas palavras, reproduzir ideologias opostas: "ELIAS - Dizes o mesmo da mesma maneira, e cobres-te com a legitimidade de o dizeres. Há aqui uma malícia subjacente que me escapa, mas pressinto-a" (p.100); ou de, utilizando antónimos, definir a mesma realidade: "FRANCISCO: - Julguei que poderia fazer isto tudo sozinho, que a minha autoridade de fundador seria suficiente, que aquele mesmo que dissera 'Faça-se' poderia dizer 'Desfaça-se', e com esta palavra se apagariam todas as outras que, passando o tempo, fizeram da virtude vício. ELIAS - Gabas-te de virtuoso? - FRANCISCO - Apenas louvo de ser pouco imaginativo nos vícios" (p.119-120) A argumentação, que põe afinal em prática o que se pensa da linguagem verbal, é um risco que José Saramago assume, que vai controlando com relativa eficácia, mas que constitui o lugar nesta peça onde a economia dramática mais se vê ameaçada.

A peça, dividida em dois actos organizados internamente a partir de entradas e saídas de personagens, apresenta uma estrutura circular, pois começa com uma reunião de conselho que situa o leitor/espectador na contemporaneidade, que lhe propõe como tema o capitalismo e lhe apresenta algumas personagens, para vir a terminar com nova reunião de conselho proposta de uma forma de combate ao capital através do combate à pobreza. Há um propósito didáctico subjacente que se manifesta na escolha do debate, da discussão a partir de pontos de vista antagónicos como forma de desenvolvimento dramático e tmabém na utilização de Francisco de Assis como referente histórico a opor pelo seu valor ético e simbólico às restantes personagens, quase só anónimas representantes do poder e do capital. Ética e política constituem assim fios de que se tece o drama da luta permanente contra " a força e as razões da força".

Apesar da circularidade discursiva, a peça abre caminho a outras páginas, outras ficções acerca da mesma luta. No final, Francisco é já João, e a sua segunda vida colhe a lição da primeira agora terminada. Ao pragmatismo, evidente na estratégia da personagem, vem juntar-se o simbolismo de alguns objectos - e são tão poucos, a sugerirem um despojamento cénico que é único sinal da regra franciscana -, bem como de um acontecimento - a morte do pai, que abre o vazio para uma outra vida. A irremediável certeza de que "só se vive uma vez" pode ser contornada pela luta de outro(s) sob forma(s) diversa(s).


[BRILHANTE, Maria João. Recensão crítica a A Segunda Vida de Francisco de Assis, de José Saramago. In: Revista Colóquio/Letras. Recensões Críticas, n. 101, jan. 1988, p.124-125]