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A caverna
Romance, 2000




Edição brasileira de A caverna.
Capa de Hélio de Almeida sobre relevo de Arthur Luiz Piza


























O que singulariza a ficção de José Saramago é o ajustamento da narrativa romanesca a uma parábola. Neste romance a parábola já começa nos desiguais papéis dos personagens, o oleiro e o guarda, estampados nos seus próprios nomes, Algor o do primeiro, significando o frio prenunciador da agitação febril, e Gacho o do segundo, significando o lugar do pescoço que suporta  a canga. A agitação do oleiro vem de seu desconforto moral: quando a louça que fabrica é rejeitada pelas instâncias decisórias superiores de um mega Centro econômico que atua como a "mão da Providência", Algor oferece-lhes bonecos de barro, representando diferentes tipos de gente que as mesmas instâncias lhe encomendam em grandes quantidades. A anulação do trabalho manual ou artesanal pela tecnologia, tal o poderia ser o resumo desse aspecto destrutivo do capitalismo em seu acme, convertido pelo romance numa parábola social, a que o romancista contrapõe, em sutil paródia, o mito dos que crêem nas sombras. Mas quando o oleiro, o guarda e sua mulher ganham o mundo luminoso e real da estrada na companhia do amável cão Achado, em sua humana animalidade à altura da cachorra Baleia de Graciliano Ramos, do cavalo Colomer de Tolstoi e do cãozinho Karenin de Milan Kundera, a parábola social é contestada pelo mito, muito embora venha a ser este, como verá o leitor, neutralizado e reapresentado, em seu puro valor cênico, pela sociedade de espetáculos (ou de massa), que se funda no poder da tecnologia.


[Benedito Nunes. Orelha da edição brasileira  publicada pela Companhia das Letras, 2000]

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A caverna, de José Saramago

por Horácio Costa

Conforme veiculado pela imprensa à época da sua publicação, foi numa visita ao “Museu do Pontal”, situado nos arredores do Rio de Janeiro, que José Saramago se inspirou para escrever seu último romance, A Caverna. Neste museu, o escritor “descobriu” umas estatuinhas de barro feitas há quarenta anos por um artista popular, Zé Caboclo, representando figuras humanas. Esse museu privado, que reúne uma coleção de trinta mil peças de arte popular, está situado ao sul do Rio, perto do mar porém longe do centro da cidade: para chegar a ele, deve-se passar por bairros ultramodernos – a Barra – nos quais quilômetros de torres de um luxo anódino sucedem-se monotonamente, interrompidas de tanto em tanto por shopping-centers de aparência intercambiável; haverá sido esse ambiente, próximo talvez ao que poderíamos chamar de “urbanística orwelliana”, o outro fator que sugeriu a Saramago a escritura de A Caverna. Tanto o rechaço ou a estupefação do escritor frente ao mundo cosmético da suburbia carioca pós-moderna, assim como a empatia de seu olhar com as figuras de barro, estão presentes no enredo do romance. A personagem principal do relato é Cipriano Algor, um oleiro que luta para sobreviver como indivíduo, através do seu empenho em fazer sobreviver a sua tradicional profissão num universo dominado pela produção em massa, que gera utensílios feitos com plástico e seus sucedâneos e transforma os objetos produzidos com técnicas tradicionais em curiosidades que cada vez menos têm interesse para os gostos homogeneizados do mercado. Algor, um viúvo recente, vive com sua filha num lugar próximo a uma grande cidade, num ambiente que Saramago descreve como de transição entre o mundo marcado pela produção em escala (com os seus cinturões de indústrias contaminantes e, depois delas, do ironicamente chamado “cinturão verde”, no qual se desenvolve a agricultura horti-fruti-granjeira produzida sob hectares de cobertura plástica cinzenta), e o campo, ou melhor, o “não-urbano”. Assim como o foco simbólico do espaço da família Algor é o forno no qual o oleiro produz – ou melhor, cria – seus objetos, o foco simbólico da ordem da cidade é o chamado “Centro”, um enorme complexo comercial-residencial. As diferentes camadas de conflito entre estes dois focos espaciais – cada um deles apresentando a configuração de uma “caverna”, ainda que com dimensões e materializações diversas – refletem-se em vários níveis do relato, de maneira irradiante. De fato, eles são os dois “paradigmas” do mesmo, com relação aos quais as personagens se definem.

O romance abre com uma clara demonstração da ascendência do segundo sobre o primeiro desses focos: certo dia, Cipriano Algor é avisado por um funcionário do Centro que seus produtos já não serão mais postos à venda nas dependências do mesmo, por terem sido considerados obsoletos (por quem?). A última oportunidade que lhe é oferecida para adequar-se aos padrões dos consumidores tampouco tem bom resultado: substituir a cerâmica utilitária que vem produzindo por bonecos de barro. Em resumo, não há conciliação possível entre o universo da família Algor e os gostos dos freqüentadores do Centro. Por outro lado, a inflexibilidade dos mecanismos de exclusão social de nossa época é enfatizada no relato pelo fato de que a família do oleiro tem que mudar-se de sua casa para um apartamento no mesmo Centro, devido a que o genro de Algor, o único membro que tem um emprego formal nesta pequena coletividade, passa a ser “guarda residente” no mall. Justamente, quando a vitória, ou a imposição, do ethos do Centro sobre os Algores parece completa, um incidente lhes revela a extensão de sua perda de identidade, e o imperativo de uma mudança. A insurgência contra a ordem do Centro, entretanto, mesmo que previsível, não se dá em termos ideológicos, porém vivenciais: nisso, sem dúvida, o leitor pode distinguir um acerto de Saramago face às possibilidades de desenvolvimento do tema tratado.

Em outros romances, José Saramago já se tinha dedicado ao estudo da convivência entre o indivíduo e o poder. A situação de A Caverna, nesse sentido, recupera a de Memorial do Convento (1982), no qual o escritor enfocou o mundo barroco ibérico; então, dois focos espaciais, o dado pelo Convento de Mafra e o da “Passarola” (o dirigível construído pelo padre heterodoxo brasileiro Bartolomeu de Gusmão no século XVIII), também alegorizavam os conflitos do mundo e do homem daquela época. Ainda, a vertente distópica, tão importante na produção romanesca saramaguiana – responsável, sem dúvida, por sua concepção do Centro em A Caverna – remete a alguns dos contos de Objecto Quase (1978). A diferença do último romance de José Saramago em relação a muito do que ele escreveu, não obstante, estriba na estreita margem de atualidade na qual se exercita a sua alegoria. O mundo de A Caverna reflete diretamente nosso presente, o “Centro” é parte de nosso cotidiano, e, por quantos Algores não cruzamos em cada um de nossos dias, nas ruas das metrópoles que habitamos? Esse adelgaçamento do impulso alegorizador responde não só a uma crescente “cidadanização” da escritura do mais importante romancista português de hoje: implica também na agudização de um olhar hábil para, na massa dos edifícios da suburbia carioca, singularizar a transcendência do gesto artesanal de uma mão específica, e elevá-lo ao nível de reminder da situação cavernária na qual os rumos da contemporaneidade nos quer fazer crer que todos estamos metidos.


[Texto publicado na Revista Atlântica, n.5, outubro de 2002]