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Significado actual da obra de Aquilino Ribeiro


O primeiro e talvez único olhar sem ilusões sobre o mundo rural português, na sua parcela beiroa. Sem ilusões, porém com amor, se por amor entenderemos não o enternecimento, não a suave lágrima, não o mútuo comprazimento do sentir, mas aquela emoção áspera que se resguarda por trás da brusquidão do gesto e da voz. Aquilino não teve continuadores, mesmo que alguns se declarem seus díscipulos. É puro equívoco essa relação discipular. Aquilino é um enorme barroco, solitário e enorme, posto na álea principla da literatura da primeira metade do século, florida e deliquescente. Não foi o único desmancha-prazeres, mas terá sido o mais teimoso, artisticamente falando. Porventura não o compreenderam bem, como não deveriam, os neo-realistas, aturdidos pela exuberância verbal de algum modo arcaizante do mestre, desorientados pelo comportamento instintivo das personagens aquilinianas, tão capazes do bem como do mal, mais capazes ainda de mudar o sentido do mal e do bem, numa espécie de jogo jovial e assustador, carnalmente humano. Porventura não compreendemos nós todos, nestes dias de hoje, que a obra de Aquilino representa um ponto extremo no caminho da língua, talvez parado no tempo, talvez cortado no seu impulso profundo, mas à espera de uma nova leitura que o ponha outra vez em movimento.

Que é o homem português? Grave questão, essa. Para mim, Fernando Pessoa diz-me infinitamente mais do homem português, apanhado ao acaso, aqui e além, entre a raia e o mar, e a bem dizer não saiu de Lisboa. Aquilino apenas fala do beirão num certo momento da sociedade urbana e capital que tentou igualmente retratar. Sugeriria, arriscando o exagero que estas generalizações comportam, que, de uma certa maneira, o mundo aquiliniano já não existe, é arqueologia. Digo-o com todo o respeito por uma obra cuja importância história estaria, justamente, no seu carácter de remate, de retrato final.

A justiça e a pertinência de tal juízo poderemos nós reconsiderá-las se, relendo hoje Aquilino, nos sentirmos mais despertos para a prosa ou para a ficção. Penso que algumas vezes a ficção não será convincente que baste, penso que não raro a prosa provocará um assomo de impaciência. Claro que havia malevolência na asserção em tempos posta a correr de que Aquilino, afinal, era um estilo à procura de assunto, mas o que me parece irrefutável é ter o prosador obscurecido com demasiada frequência aquilo que o ficcionista pretende mostrar. A não ser que venhamos um dia a concluir, espero que provisoriamente, que a ficção de Aquilino é apenas, e só, a sua prosa...

Darei alguns títulos sem precisão cronológica: O Malhadinhas, Andam Faunos pelos Bosques, Terras do Demo, Quando os Lobos Uivam, A Casa Grande de Ramarigães... Não por crer que lhes esteja garantida mais longa vida que às restantes obras, mas porque estas ainda eu as leria daqui a ciquenta anos, se tivesse tanto... Quanto às novas gerações, eis-me em grande perplexidade: que livros de Aquilino poderão interessar-lhes? Talvez o Andam Faunos, por aquela genesíaca franqueza sexual, talvez os Lobos, porque continuam a uivar, talvez as Terras, porque o demo ainda é o dono delas, talvez O Malhadinhas, nosso pícaro e manhoso antepassado, e espero bem que A Casa Grande, porque é uma obra-prima.



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SARAMAGO, José. Significado actual da obra de Aquilino Ribeiro. In: Revista Colóquio/Letras. Inquérito, n. 85, maio 1985, p. 99-100.