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É tempo...


Não há pior interlocutor que aquele que em certa altura da discussão, quase sempre quando os argumentos começam a escassear, nos dispara com um trejeito fisionómico de falsa modéstia as palavras fatais: “Eu cá não sei de nada, sou um ignorante, mas tenho as minhas opiniões”. Arrepia-se um homem de boa fé ouvir isto. É uma frase postiça que pretende colocar no mesmo plano, quer dizer, compatibilizar a ignorância e o conhecimento, como se este fosse possível sem um esforço metódico e continuado, sem uma disciplina mental, sem uma constante revisão das noções adquiridas. Tudo – excepto o critério absurdo de que pretende impor a ignorância como... meio de conhecimento.

É claro que, no fundo, este nosso interlocutor não acredita no que diz. Geralmente a frase limita-se a querer ser uma chamada à ordem: sugere, com minguada delicadeza, que as prosápias intelectuais não valem mais, somadas todas, que alegada e estimada ignorância.

Convém, no entanto, esclarecer antes de continuar que isto nada tem que ver com o grau de instrução do indivíduo (repare-se que não dissemos cultura). Tal frase é possível em qualquer boca, com as variantes que as diferenciações de instrução (torne-se a reparar que não dissemos cultura) lhe introduzem. Quer dizer: pessoas que fizeram estudos superiores podem encontrar-se neste ponto com aqueles que não puderam ira além dos estudos primários.

Continuando: A nossa educação faz-se num meio técnico, num dado meio artístico e literário – em suma, num dado meio cultural. Somos influenciados pelas preferências dominantes da nossa época de formação, entusiasmando-nos (se somos pessoas susceptíveis de entusiasmo) – e, por altura dos trinta anos, dá-se a tragédia. Exactamente quando todos os nossos familiares e conhecidos nos consideram maduros e verdadeiramente aptos para a vida é que deixamos de viver. A nossa morte começa aí. Razões várias, das quais não é a menor a necessidade absorvente de ganhar o pão de cada dia, desviam-nos da rota que, melhor ou pior, com mais ou menos consciência, vínhamos seguindo até aí. Cristalizamos, congelamo-nos na forma mental que tínhamos então e vamos levar os trinta ou quarenta anos que ainda temos para viver e papaguear o que vimos e aprendemos até aos trinta,  como se o mundo e quem cá anda deixassem de valer a pena a partir dessa altura. É então que com uma docilidade que é resultado de uma tradição de séculos (e porque não milenários?) começamos a pronunciar aquelas palavras equivalentes a uma certidão de óbito mental: “No meu tempo...

Eis a confissão de que o tempo em que fisiologicamente continuamos a viver já não é o nosso tempo, eis o reconhecimento tácito de que estamos cegos para tudo que seja expressão viva e autêntica de um mundo em que vagueamos como fantasmas de um universo revoluto, agarrados a convicções, ideias e formas que, diga-se, valem pelo que valem, e muitas vezes valem muito, mas não pelo habituámos a encontrar nelas.

Semelhante atitude é particularmente reconhecível na atitude do homem cristalizado diante da arte moderna. Este homem nem sempre é o ignorante que, com alguma ironia e não pouca falsidade, nos que fazer crer que é. Acompanha muitas vezes as manifestações artísticas da sociedade em que vive, vai ao teatro, lê alguma coisa mais que o quotidiano noticioso e o jornal desportivo do seu agrado, ouve música em casa e no concerto, visita exposições, frequenta museus. Resumindo: na aparência é um homem dado às coisas e casos da cultura e não se peja de o alardear, salvo quando convém declarar que é um ignorante... Tem suas preferências, as suas opiniões, quebra lanças por elas – e é ferozmente intolerante em relação a tudo que em arte lhe mereça o qualificativo (pejorativo, na sua boca) de moderno.

Repare-se na contradição: este homem sonha com um automóvel do último modelo, usa capa de plástico, calça peúgas de nylon, serve-se do telefone, anseia pela televisão, reclama o metropolitano, faz projectos de viagem à Lua – e não quer nada com a Arte do tempo em que vive. Na pintura ficou-se no naturalismo, ou no impressionismo, o que já representa um sensível avanço; na arquitectura é um fanático do beiral de cantos revirados; no teatro só perante a comédia burguesa  é que se acha com a sua gente; na melodia ou não tem melodia, e se a não tem – isso não é música!

E pronto. A partir daqui, amado desta intolerância, ei-lo a dar opiniões. Picasso? Sabe desenhar, claro, provou-o no princípio da sua carreira, mas depois de duas: ou está a “mangar com a tropa” ou então descobriu, com muito faro comercial, que desenhar erradamente era bem mais rendoso. Le Corbusier? Isso não são casas, são caixotes com janelas. A casa ideal há-de ter os beirais revirados, um caramanchão para tardes calmosas, e também um alpendre e uma lanterna de ferro forjado por cima da porta. Bela Bartok? Um sujeito impossível que reúne dois pianos e a percussão e faz uma sonata. Como se fosse possível música sem violinos e, o que é mais, violinos a tocarem de uma certa maneira. Quanto aos novos autores teatrais não há discussão sequer, uma vez que ninguém os conhece ou só os conhece se fazem teatro velho...

Diante da arte moderna este homem tem, pois um gesto de mau humor ou de chacota e diz: “Não percebo, sou muito estúpido para estas subtilezas”. E dizendo isto julga estar a ser terrivelmente irónico. Pois não está mesmo a ver que os estúpidos somos nós? Nós que temos a franqueza (a força, digamos antes) de amar o tempo em que vivemos, a inocência lúcida de ir para a obra de arte autêntica sem ideias feitas, sem atitudes preconcebidas, sem bitolas aferidas pela autoridade e pelo hábito.

Nós sabemos. Há muito cabotismo, muita falsa glória, muita carência de honestidade intelectual. Sabemos e por isso mesmo procuramos separar o verdadeiro do falso, o duradouro do efémero, distinguir entre o que é expressão autêntica e o que é simples epigonismo. Erramos? Ah, quantas e quantas vezes! Mas erramos escolhendo, separando, distinguindo, o justo ou o errado que aprendemos no nosso tempo, só porque foi o nosso tempo.

A arte moderna, queiram-no ou não, é uma coisa muita séria, tão séria como o foi sempre a arte em qualquer época. Troçar dela, ignorá-la, não adianta nada. Ela permanece ali diante de nós, à espera, com a tranquila certeza de quem sabe que cedo ou tarde lhe farão justiça.

E parece-nos que já vai sendo tempo de começar.