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Abordar um texto poético, qualquer que seja o grau de profundidade ou amplitude de leitura, pressupõe, e ouso dizer que pressuporá sempre, certa incomodidade de espírito, como se uma consciência paralela observasse com ironia a inanidade relativa do trabalho de desocultação que, estando obrigado a organizar, no complexo sistema capilar do poema, um itinerário contínuo e uma velocidade coerente, se obriga ao mesmo tempo a abandonar as mil e uma probabilidades oferecidas pelos outros itinerários, apesar de estar de antemão ciente de que só depois de os ter percorrido a todos, a esses e àquele que de facto escolheu, é que acederia ao significado último do texto, se o há, podendo suceder, por outro lado, que a leitura alegadamente totalizadora assim obtida viesse a servir, tão-somente, para impor portanto a necessidade duma nova leitura. Todos carpimos a sorte de Sísifo, condenado a empurrar, pela montanha acima, uma sempiterna pedra que sempiternamente rolará para o vale, mas talvez o castigo do desafortunado homem seja saber que não virá a tocar, sequer, em uma só de quantas pedras, inúmeras, ao redor, esperam o esforço que as arrancaria à imobilidade.

Não perguntamos ao sonhador por que está sonhando, não requeremos do pensador as razoes do seu pensar, mas de um e outro quereríamos conhecer aonde os levaram, ou levaram eles, o sonho e o pensamento, aquela pequena constelação de brevidades a que costumamos chamar, por necessária, se bem que insatisfeita, comodidade, conclusões. Porém, ao poeta – sonho e pensamento reunidos – não se lhe há de exigir que nos venha explicar os motivos, desvendar os caminhos e assinalar os propósitos. O poeta, à medida que avança, apaga os rastos que foi deixando, cria atrás de si, entre os dois horizontes, um deserto, razão por que o leitor terá de traçar e abrir, no terreno assim alisado, uma rota sua, pessoal, que no entanto jamais se justaporá, jamais coincidirá com a do poeta, única e finalmente indevassável. Por sua vez, o poeta tendo varrido os sinais que, durante um momento, marcaram não só o carreiro por onde veio, mas também as hesitações, as pausas, as medições da altura aonde agora se encontra, parado no meio do poema ou já no fim dele. Nem o leitor pode repetir o percurso do poeta, nem o poeta poderá reconstituir o percurso do poema: o leitor interrogará o poema feito, o poeta não pode senão renunciar a saber como o fez.

Nada mais fácil que afirmar – com a frágil sabedoria de um leitor acostumado aos artifícios da composição narrativa – que o menino deste poema, por vezes arcadicamente evocador, não é um menino nenhum, somente a personagem útil e inocente que veio, de modo simultâneo e contraditório, permitir ao poeta dizer mais e dizer menos do que em seu próprio nome diria. Tendo deitado o menino naquela cama, pousado no travesseiro a infantil cabeça, guiado o primeiro e inquieto olhar pelas ravinas e assombros da “serra de linho”, pode já o poeta, a salvo de maiores indiscrições, invocar a sua própria memória, não para trazer ao presente que ele é, mas para a acompanhar numa viagem inversa, para além, mais e mais até o ponto em que a memória deixará de ser memória sua para tornar-se memória de outras memórias, e finalmente invenção dela e delas.

Que espécie de viagem é essa, então? A que parte do mundo, a que momento do tempo se dirige este regresso? Quem está lá, à espera, no princípio do caminho? O poeta apagou os seus rastos, o leitor terá de entrar por seu pé na “singular paisagem que vive no linho”, para “só ver, mais nada”. E que vê o leitor? Vê que, “indubitável, sobre a lua” sobre a recordação de um pai morto em julho – “em julho passado” –, precisa a memória do menino subitamente, talvez para que, tornada tão próxima, se torne também memória nossa, e nossa dor, experimentada já, ou previsível. Os meninos não têm um passado que possam recuperar, apenas dispõem de “imagens cuja sintaxe foi raptada”, ou, mais exatamente, para a qual não criaram ainda as suas regras pessoais, aquelas que virão dar um sentido próprio ao sistema geral da comunicação pela palavra. Trespassado pela recordação fulminante da morte do pai, um menino como este deveria apenas deixar correr as aflitas lágrimas para o travesseiro, afundando nele a cabeça “como animal no feno”. Para trás dessa memória imediata não possui ele nada, somente um deserto varrido.

Porém, já o dissemos, o menino é só uma personagem inocente, útil ao enredo, um pretexto, quiçá uma máscara, e apetece dizer que mesmo o inerte travesseiro que o acolhe é mais real do que ele. Afinal, o que nesse travesseiro pousou e se está agitando é uma outra realidade, a cabeça do poeta, a memória que, nele, não se há de satisfazer com o marco temporal da morte de um pai “em julho”, e que, pelo contrário, talvez para diluir num tempo medido em séculos, a dor recente, buscará no passado um outro pai, o pai longínquo, o pai antepassado, aquele cuja perda não é pena, mas sentido. Esta busca não poderia fazer o menino, mas o poeta sim, e de um modo que, obviamente, se encontra fora das possibilidades memorísticas e culturais da criança, enquanto o for, pois o passado que o presente do poeta diz necessitar é “só para explicá-lo, não para explicar-se”. Contra o uso e o abuso de uma presunçosa dialéctica do tempo, o poeta não espera que o passado lhe explique o presente, quer, ele próprio explicar esse passado, reconstituir e recuperar um pai ancestral oferecido à sua “adulta percepção”, porquanto o pai propriamente dito, esse que morreu “em julho”, só o foi de um menino, ainda sem memória, mas implícita promessa de poeta, que neste momento chora sobre um travesseiro de linho.

“Percorremos sem pensar nos pés”, diz-nos Horácio Costa, mas, em verdade, são eles que vão deixando no chão os sinais com que se fez o caminho. O poema será pois aquele espaço liso onde o poeta apagou os seus próprios sinais, também ele oferecido à “adulta percepção” do leitor. Rota, percurso, itinerário, semideiro sem dúvida estreito, sem dúvida impreciso, foi por ele que ambicionei chegar ao coração pulsante do poema, à memória do poeta, às “suas móveis sensações”. Toda a leitura é uma tentativa – “estátua de sal que se distingue no umbral de um fim sobre um ombro movente” –, memória criadora com que continuamos a negar a resignação de todas as finitudes.