É difícil defender
só com palavras a vida
(ainda mais quando ela é
esta que vê, severina).
João Cabral de Melo Neto
Oxalá não venha nunca à sublime cabeça de Deus a idéia de
viajar um dia a estas paragens para certificar-se de que as pessoas que por
aqui mal vivem, e pior vão morrendo, estão a cumprir de modo satisfatório o
castigo que por ele foi aplicado, no começo do mundo, ao nosso primeiro pai e à
nossa primeira mãe, os quais, pela simples e honesta curiosidade de quererem
saber a razão por que tinham sido feitos, foram sentenciados, ela, a parir com
esforço e dor, ele, a ganhar o pão da família com o suor do seu rosto, tendo
como destino final a mesma terra donde, por um capricho divino, haviam sido
tirados, pó que foi pó, e pó tornará a ser. Dos dois criminosos, digamo-lo já,
quem veio a suportar a carga pior foi ela e as que depois dela vieram, pois
tendo de sofrer e suar tanto para parir, conforme havia sido determinado pela
sempre misericordiosa vontade de Deus, tiveram também de suar e sofrer
trabalhando ao lado dos seus homens, tiveram também de esforçar-se o mesmo ou
mais do que eles, que a vida, durante muitos milénios, não estava para a
senhora ficar em casa, de perna estendida, qual rainha das abelhas, sem outra
obrigação que a de desovar de tempos a tempos, não fosse ficar o mundo deserto
e depois não ter Deus em quem mandar.
Se, porém, o dito Deus, não fazendo caso de recomendações e
conselhos, persistisse no propósito de vir até aqui, sem dúvida acabaria por
reconhecer como, afinal, é tão pouca coisa ser-se um Deus, quando, apesar dos
famosos atributos de omnisciência e omnipotência, mil vezes exaltados em todas
as línguas e dialectos, foram cometidos, no projecto da criação da humanidade,
tantos e tão grosseiros erros de previsão, como foi aquele, a todas as luzes
imperdoável, de apetrechar as pessoas com glândulas sudoríparas, para depois
lhes recusar o trabalho que as faria funcionar - as glândulas e as
pessoas. Ao pé disto, cabe perguntar se não teria merecido mais prémio que
castigo a puríssima inocência que levou a nossa primeira mãe e o nosso primeiro
pai a provarem do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. A verdade,
digam o que disserem autoridades, tanto as teológicas como as outras, civis e
militares, é que, propriamente falando, não o chegaram a comer, só o morderam,
por isso estamos nós como estamos, sabendo tanto do mal, e do bem tão pouco.
Envergonhar-se e arrepender-se dos erros cometidos é o que
se espera de qualquer pessoa bem nascida e de sólida formação moral, e Deus,
tendo indiscutivelmente nascido de Si mesmo, está claro que nasceu do melhor
que havia no seu tempo. Por estas razões, as de origem e as adquiridas, após
ter visto e percebido o que aqui se passa, não teve mais remédio que clamar mea
culpa, mea maxima culpa, e reconhecer a excessiva dimensão dos enganos em que
tinha caído. É certo que, a seu crédito, e para que isto não seja só um
contínuo dizer mal do Criador, subsiste o facto irrespondível de que, quando
Deus se decidiu a expulsar do paraíso terreal, por desobediência, o nosso
primeiro pai e a nossa primeira mãe, eles, apesar da imprudente falta, iriam
ter ao seu dispor a terra toda, para nela suarem e trabalharem à vontade.
Contudo, e por desgraça, um outro erro nas previsões divinas não demoraria a
manifestar-se, e esse muito mais grave do que tudo quanto até aí havia
acontecido.
Foi o caso que estando já a terra assaz povoada de filhos,
filhos de filhos e filhos de netos da nossa primeira mãe e do nosso primeiro
pai, uns quantos desses, esquecidos de que sendo a morte de todos, a vida
também o deveria ser, puseram-se a traçar uns riscos no chão, a espetar umas estacas,
a levantar uns muros de pedra, depois do que anunciaram que, a partir desse
momento, estava proibida (palavra nova) a entrada nos terrenos que assim
ficavam delimitados, sob pena de um castigo, que segundo os tempos e os
costumes, poderia vir a ser de morte, ou de prisão, ou de multa, ou novamente
de morte. Sem que até hoje se tivesse sabido porquê, e não falta quem afirme
que disto não poderão ser atiradas as responsabilidades para as costas de Deus,
aqueles nossos antigos parentes que por ali andavam, tendo presenciado a
espoliação e escutado o inaudito aviso, não só não protestaram contra o abuso
com que fora tornado particular o que até então havia sido de todos, como
acreditaram que era essa a irrefragável ordem natural das coisas de que se
tinha começado a falar por aquelas alturas. Diziam eles que se o cordeiro veio
ao mundo para ser comido pelo lobo, conforme se podia concluir da simples
verificação dos factos da vida pastoril, então é porque a natureza quer que
haja servos e haja senhores, que estes mandem e aqueles obedeçam, e que tudo
quanto assim não for será chamado subversão.
Posto diante de todos estes homens reunidos, de todas estas
mulheres, de todas estas crianças (sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a
terra, assim lhes fora mandado), cujo suor não nascia do trabalho que não
tinham, mas da agonia insuportável de não o ter, Deus arrependeu-se dos males
que havia feito e permitido, a um ponto tal que, num arrebato de contrição,
quis mudar o seu nome para um outro mais humano. Falando à multidão, anunciou:
“A partir de hoje chamar-me-eis Justiça.” E a multidão respondeu-lhe: “Justiça,
já nós a temos, e não nos atende. Disse Deus: “Sendo assim, tomarei o nome de
Direito.” E a multidão tornou a responder-lhe: “Direito, já nós o temos, e não
nos conhece." E Deus: "Nesse caso, ficarei com o nome de Caridade,
que é um nome bonito.” Disse a multidão: “Não necessitamos caridade, o que
queremos é uma Justiça que se cumpra e um Direito que nos respeite.” Então,
Deus compreendeu que nunca tivera, verdadeiramente, no mundo que julgara ser
seu, o lugar de majestade que havia imaginado, que tudo fora, afinal, uma
ilusão, que também ele tinha sido vítima de enganos, como aqueles de que se
estavam queixando as mulheres, os homens e as crianças, e, humilhado,
retirou-se para a eternidade. A penúltima imagem que ainda viu foi a de
espingardas apontadas à multidão, o penúltimo som que ainda ouviu foi o dos
disparos, mas na última imagem já havia corpos caídos sangrando, e o último som
estava cheio de gritos e de lágrimas.
No dia 17 de Abril de 1996, no estado brasileiro do Pará, perto de uma povoação
chamada Eldorado dos Carajás (Eldorado: como pode ser sarcástico o destino de
certas palavras...), 155 soldados da polícia militarizada, armados de
espingardas e metralhadoras, abriram fogo contra uma manifestação de camponeses
que bloqueavam a estrada em acção de protesto pelo atraso dos procedimentos
legais de expropriação de terras, como parte do esboço ou simulacro de uma
suposta reforma agrária na qual, entre avanços mínimos e dramáticos recuos, se
gastaram já cinqüenta anos, sem que alguma vez tivesse sido dada suficiente
satisfação aos gravíssimos problemas de subsistência (seria mais rigoroso dizer
sobrevivência) dos trabalhadores do campo. Naquele dia, no chão de Eldorado dos
Carajás ficaram 19 mortos, além de umas quantas dezenas de pessoas feridas.
Passados três meses sobre este sangrento acontecimento, a polícia do estado do
Pará, arvorando-se a si mesma em juiz numa causa em que, obviamente, só poderia
ser a parte acusada, veio a público declarar inocentes de qualquer culpa os
seus 155 soldados, alegando que tinham agido em legítima defesa, e, como se
isto lhe parecesse pouco, reclamou processamento judicial contra três dos
camponeses, por desacato, lesões e detenção ilegal de armas. O arsenal bélico
dos manifestantes era constituído por três pistolas, pedras e instrumentos de
lavoura mais ou menos manejáveis. Demasiado sabemos que, muito antes da
invenção das primeiras armas de fogo, já as pedras, as foices e os chuços
haviam sido considerados ilegais nas mãos daqueles que, obrigados pela
necessidade a reclamar pão para comer e terra para trabalhar, encontraram pela
frente a polícia militarizada do tempo, armada de espadas, lanças e alabardas.
Ao contrário do que geralmente se pretende fazer acreditar, não há nada mais
fácil de compreender que a história do mundo, que muita gente ilustrada ainda
teima em afirmar ser complicada demais para o entendimento rude do povo.
Pelas três horas da madrugada do dia 9 de Agosto de 1995, em
Corumbiara, no estado de Rondônia, 600 famílias de camponeses sem terra, que se
encontravam acampadas na Fazenda Santa Elina, foram atacadas por tropas da
polícia militarizada. Durante o cerco, que durou todo o resto da noite, os camponeses
resistiram com espingardas de caça. Quando amanheceu, a polícia, fardada e
encapuçada, de cara pintada de preto, e com o apoio de grupos de assassinos
profissionais a soldo de um latifundiário da região, invadiu o acampamento.
varrendo-o a tiro, derrubando e incendiando as barracas onde os sem-terra
viviam. Foram mortos 10 camponeses, entre eles uma menina de 7 anos, atingida
pelas costas quando fugia. Dois polícias morreram também na luta.
A superfície do Brasil, incluindo lagos, rios e montanhas, é
de 850 milhões de hectares. Mais ou menos metade desta superfície, uns 400
milhões de hectares, é geralmente considerada apropriada ao uso e ao
desenvolvimento agrícolas. Ora, actualmente, apenas 60 milhões desses hectares
estão a ser utilizados na cultura regular de grãos. O restante, salvo as áreas
que têm vindo a ser ocupadas por explorações de pecuária extensiva (que, ao
contrário do que um primeiro e apressado exame possa levar a pensar,
significam, na realidade, um aproveitamento insuficiente da terra), encontra-se
em estado de improdutividade, de abandono. sem fruto.
Povoando dramaticamente esta paisagem e esta realidade
social e económica, vagando entre o sonho e o desespero, existem 4 800 000
famílias de rurais sem terras. A terra está ali, diante dos olhos e dos braços,
uma imensa metade de um país imenso, mas aquela gente (quantas pessoas ao todo?
15 milhões? mais ainda?) não pode lá entrar para trabalhar, para viver com a
dignidade simples que só o trabalho pode conferir, porque os voracíssimos descendentes
daqueles homens que primeiro haviam dito: “Esta terra é minha”, e encontraram
semelhantes seus bastante ingénuos para acreditar que era suficiente tê-lo
dito, esses rodearam a terra de leis que os protegem, de polícias que os
guardam, de governos que os representam e defendem, de pistoleiros pagos para
matar. Os 19 mortos de Eldorado dos Carajás e os 10 de Corumbiara foram apenas
a última gota de sangue do longo calvário que tem sido a perseguição sofrida
pelos trabalhadores do campo, uma perseguição contínua, sistemática,
desapiedada, que, só entre 1964 e 1995, causou 1 635 vítimas mortais, cobrindo
de luto a miséria dos camponeses de todos os estados do Brasil. com mais
evidência para Bahia, Maranhão. Mato Grosso, Pará e Pernambuco, que contam, só
eles, mais de mil assassinados.
E a Reforma Agrária, a reforma da terra brasileira
aproveitável, em laboriosa e acidentada gestação, alternando as esperanças e os
desânimos, desde que a Constituição de 1946, na seqüência do movimento de
redemocratização que varreu o Brasil depois da Segunda Guerra Mundial, acolheu
o preceito do interesse social como fundamento para a desapropriação de terras?
Em que ponto se encontra hoje essa maravilha humanitária que haveria de
assombrar o mundo, essa obra de taumaturgos tantas vezes prometida, essa
bandeira de eleições, essa negaça de votos, esse engano de desesperados? Sem ir
mais longe que as quatro últimas presidências da República, será suficiente
relembrar que o presidente José Sarney prometeu assentar 1.400.000 famílias de
trabalhadores rurais e que, decorridos os cinco anos do seu mandato, nem sequer
140.000 tinham sido instaladas; será suficiente recordar que o presidente
Fernando Collor de Mello fez a promessa de assentar 500.000 famílias, e nem uma
só o foi; será suficiente lembrar que o presidente Itamar Franco garantiu que
faria assentar 100.000 famílias, e só ficou por 20.000; será suficiente dizer,
enfim, que o actual presidente da República, Fernando Henrique Cardoso,
estabeleceu que a Reforma Agrária irá contemplar 280.000 famílias em quatro
anos, o que significará, se tão modesto objectivo for cumprido e o mesmo
programa se repetir no futuro, que irão ser necessários, segundo uma operação
aritmética elementar, setenta anos para assentar os quase 5.000.000 de famílias
de trabalhadores rurais que precisam de terra e não a têm, terra que para eles
é condição de vida, vida que já não poderá esperar mais. Entretanto, a polícia
absolve-se a si mesma e condena aqueles a quem assassinou.
O Cristo do Corcovado desapareceu, levou-o Deus quando se retirou para a
eternidade, porque não tinha servido de nada pô-lo ali. Agora, no lugar dele,
fala-se em colocar quatro enormes painéis virados às quatro direcções do Brasil
e do mundo, e todos, em grandes letras, dizendo o mesmo: UM DIREITO QUE
RESPEITE, UMA JUSTIÇA QUE CUMPRA.
JOSÉ SARAMAGO
1997