Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas
Romance inacabado, 2014
Ao falecer, em junho de 2010, José Saramago havia deixado um último projeto inacabado em seu computador. Sob o título de Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas - um trecho retirado da obra Exortação da guerra, de Gil Vicente -, o Prêmio Nobel português criava o que viria a ser seu último livro: a história de um Artur Paz Semedo, um homem comum que trabalha na fábrica de armas Produções Belona S. A.
Paz Semedo é o funcionário exemplar que nunca questionou as ordens de seus superiores ou se angustiou com a finalidade que teriam os artigos fabricados na empresa. Pelo contrário, sentia mesmo certo orgulho do renome da firma e ambicionava dirigir a área de armamentos pesados. No entanto, sua mulher - uma pacifista tão radical a ponto de alterar o próprio nome de Berta (que designava um canhão ferroviário alemão na Primeira Guerra) para Felícia - o deixou por não suportar mais conviver com o ofício do marido. Há sinais por toda parte de que ele já não viverá com a consciência tão tranquila.
[Texto extraído da orelha da edição brasileira publicada pela Companhia das Letras em 2014]
Romance inacabado, 2014
Edição portuguesa de Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas. Todas as edições da obra têm ilustrações de Günter Grass |
Ao falecer, em junho de 2010, José Saramago havia deixado um último projeto inacabado em seu computador. Sob o título de Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas - um trecho retirado da obra Exortação da guerra, de Gil Vicente -, o Prêmio Nobel português criava o que viria a ser seu último livro: a história de um Artur Paz Semedo, um homem comum que trabalha na fábrica de armas Produções Belona S. A.
Paz Semedo é o funcionário exemplar que nunca questionou as ordens de seus superiores ou se angustiou com a finalidade que teriam os artigos fabricados na empresa. Pelo contrário, sentia mesmo certo orgulho do renome da firma e ambicionava dirigir a área de armamentos pesados. No entanto, sua mulher - uma pacifista tão radical a ponto de alterar o próprio nome de Berta (que designava um canhão ferroviário alemão na Primeira Guerra) para Felícia - o deixou por não suportar mais conviver com o ofício do marido. Há sinais por toda parte de que ele já não viverá com a consciência tão tranquila.
[Texto extraído da orelha da edição brasileira publicada pela Companhia das Letras em 2014]
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Alabardas,
Alabardas, de José Saramago
Por Pedro
Fernandes de O. Neto
"É mais
fácil mobilizar os homens para a guerra que para a paz. Ao longo da história, a
Humanidade sempre foi levada a considerar a guerra como o meio mais eficaz de
resolução de conflitos, e sempre os que governaram se serviram dos breves intervalos
de paz para a preparação das guerras futuras. Mas foi sempre em nome da paz que
todas as guerras foram declaradas."
José
Saramago no Diário de Notícias
Quando Claraboia veio
a lume em 2011, o romance esteve quase dois anos na estante como se aguardasse
uma maturação do papel para sua leitura; quando na verdade era um receio
interno de quem ainda não havia perdoado a ingratidão do tempo sobre figuras
como a de José Saramago e do luto que é entrar numa livraria e não ter mais
aquele anseio de um livro por vir. A ocasião agora é outra: desde que
soube da notícia de publicação do que seria o último romance do escritor
português, não hesitei em avançar com a leitura costurada numa tarde livre. Não
haverá leitor que saia destas páginas sem acreditar na grandiosidade do romance
se o tempo tivesse sido menos rigoroso e deixado a forma maquinada pelo autor
alcançar o seu limite.
De todo
modo, eu creio que não devo (nem tenho o direito) de permanecer fechado aos
anúncios que tem circulado de ser este um romance por acabar; é preferível
até, tomar da liberdade crítica com que o próprio Saramago certa vez tomou para
escrever sob o título A viagem do elefante a denominação de que as
aquelas tantas páginas era um conto. Tomar da liberdade crítica para dizer
que Alabardas finda por ser um conto. Logo, um texto acabado. E
por estarmos diante do incipt de um romance, a denominação parece
ajustar-se; ainda mais se levado a pensar sobre as várias definições que acodem
a teoria estrutural sobre este gênero.
Como um
conto, e aqui penso na beleza daquele O conto da ilha desconhecida, estas
páginas trazem aquilo que legitimamente ficou conhecido como estilo
saramaguiano: e digo olhando para além da estrutura narrativa, digo olhando
para o conteúdo. Artur Paz Semedo já figura na extensa galeria de seres
saramaguianos. Funcionário da indústria de armas Belona S.A. resolve, depois de
conseguir autorização da empresa onde trabalha, investigar nos arquivos da
empresa o que nela se produzia e se vendia nos anos de 1930. A motivação para a
investigação se constrói a partir do filme de André Malraux, L’Espoir, que
versa sobre a Guerra Civil na Espanha no final daquela década.
Antes disso,
Paz Semedo é o típico funcionário exemplar que nunca questionou as ordens de
seus superiores ou sequer se deu ao trabalho de pensar sobre a finalidade
daquilo que era produzido na Belona. Por isso, até sentia certo orgulho por
pertencer a uma empresa de tal envergadura. Sua mulher (e eis aqui mais uma das
mulheres a também incorporar a galeria das figuras do gênero criadas pelo
escritor), Felícia, o oposto do companheiro, uma pacifista radical, separa-se
dele por não suportar conviver com essa posição inerte de Semedo, além da
profissão que leva na Belona.
Reforça-se,
então, aquela capacidade de lucidez alcançada pela figura feminina na obra de
Saramago: a de ser portadora das decisões, a de ser a que está à frente, tem
pulso firme, não está em cima do muro, não titubeia, não se conforma com a
realidade do modo como se apresenta a ela. Radicalismos à parte, o espírito
pacifista de Felícia é tamanho que opta pela mudança do seu primeiro nome. E os
nomes nessas páginas de Alabardas têm um significado muito rico; o
leitor já terá atentado: Felícia, Belona, Paz Semedo. Os dois últimos, por exemplos,
carregados de uma ironia. Mesmo sabedor de que Belona deriva de bélico,
mas o termo assim como se apresenta tende também para ideia de belo; e
onde estaria a beleza do bélico se não na falsa ideia vendida por empresas do
gênero de que as armas existem como sustentação da paz entre os homens.
Paz Semedo,
entretanto, é um nome por nascer. Que as atitudes que tomaria depois de iniciar
sua investigação nos arquivos da Belona certamente seriam tentativas de rever a
posição passiva em que tem vivido desde sempre e fazer jus a primeira e
principal impressão que se tem sobre seu nome – paz sem medo. Seja qual
fosse sua atitude, parece-me que não alcançaria uma reordenação do poder de
matar tão enraizado na cultura humana; como aquele Sr. José em Todos os
nomes que mesmo não alcançando reverter os modos como os sujeitos
contemporâneos se relacionam com os outros, desperto de sua postura, não hesita
em perfurar as vias comuns e tentar reinventar a natureza desses modos de que
vimos construindo com a falsa certeza de verdadeiros.
Ainda sobre
os nomes, a escolha de um verso de “Exortação a guerra”, de Gil Vicente,
obedece também ao modelo do dizer uma coisa para significar outra como é
visível para outras obras do escritor português. A peça alegórica foi representa
em 1514 para o rei D. Manuel, quando da partida do duque de Bragança e
Guimarães para Azamoura; como um incitamento à guerra contra os mouros,
levanta-se entre as personagens Pantasileia quem proclama “Alabardas,
alabardas!/ Espingardas, espingardas!/ Não queirais ser Genoezes,/ Senão muito
Portuguezes”. Até o fim, Saramago não deixou o caráter de subverter
determinados lugares discursivos já fossilizados na língua. No mesmo instante
em que atenta para um tema que não é de hoje, mas está presente na cultura
humana desde sempre, atenta contra o tom de exortação pelo da crítica. Como se
perguntasse o que há para ser exultado numa atitude de desintegração da vida
humana. Ou como bem se refere Fernando Gómez Aguillera investe em nossa
consciência para incomodar, intranquilizar e depositar no âmbito pessoal o
desafio da regeneração; embora cética, a vontade presentificada na literatura
saramaguiana é dar pulsão a alternativa de um mundo mais humano.
Mas, é
conveniente irmos ao tema ou ao apelo impresso em Alabardas. Estamos
novamente diante da voz incansável de alguém que até o último instante não
tencionou outra coisa se não suscitar consciências a pensar outras vias, outras
maneiras de reinventar a comunidade humana ou fazer repensar as atitudes que
vimos acumulando como designativas da razão. Com esse título, Saramago tocou
justamente naquilo que mais tem acentuado o afloramento da intolerância e o
afastamento entre os indivíduos: as armas. É um texto nascido como os outros
que compõem sua bibliografia de uma inquietação; da mesma natureza do não
colocado à frente de muitas outras sentenças com aquele claro não escritor por
Raimundo Silva em História do cerco de Lisboa.
No encontro
que tive em novembro de 2013 com a companheira do escritor, Pilar del Río, a
quem certamente devemos a publicação tão cedo dessas páginas, contou-me sobre a
motivação por baixo da ideia de escrever Alabardas, alabardas: disse-me
Pilar que Saramago havia lido que na Guerra Civil da Espanha, um das
muitas bombas lançadas não explodiu. Mais tarde descobriu-se que no seu
interior escondia-se um bilhete dizendo que aquele morteiro não explodiria. A
história foi contada pelo escritor durante a apresentação de Caim, segundo
revela Ricardo Viel para a 28ª edição da Revista Blimunda. Na ocasião,
acrescentou: “Que se passa para que a classe operária tão capaz de lutas não
tenha conseguido o entrar nos portões duma fábrica de armas?” Meses antes da
fala de apresentação do romance de 2009 já o escritor havia anotado em seu
diário cujas páginas foram copiadas na edição ora apresentada que estava motivado
a escrever mais um livro.
Os dois
editorias redigidos por Pilar – para este número da Revista Blimunda e
para o número 26 – são esclarecedores quanto ao ato desse livro: há que se
questionar sobre esse fatídico mecanismo que até então vimos adotando como
justificável à manutenção da paz. Sabemos que a arma ou guerra só cumprem um
benefício que é o de alimentar a mesa dos que dependem dessa economia macabra.
Afinal os dados manipulados têm atestado a guerra como a saída mais imediata
para eliminação do inimigo. Mas, a pergunta que se faz é quais esforços têm
sido feitos para avançarmos logo para a intolerância? Quem são os meus inimigos
se nem ao certo os conheço? Onde está a capacidade do diálogo? O poder da
palavra? Por que não assumir que esses interesses são escusos e compactuam com
o individualismo e a manutenção de um dos pilares (talvez o mais forte) do
sistema capitalista? Essas perguntas fazemos nós sabedores que não há
justificativas – por mais bem construídas que sejam – que justificam a necessidade
de valer-se da violência para resolver indiferenças.
O tema da
guerra e de suas consequências nefastas tinha de se tornar um romance de José
Saramago; sua literatura está repleta de situações contestatórias desse mal:
em O ano de 1993; em Levantado do chão é a denúncia a
Guerra Colonial na África; em Memorial do convento, Baltasar Sete-Sóis é
um soldado maneta que perdeu a mão na guerra; em História do cerco de
Lisboa é a própria guerra dos primórdios da Península Ibérica; em O
ano da morte de Ricardo Reis é a Guerra Civil e o assentamento das
ditaduras; em O evangelho segundo Jesus Cristo, Caim e In
nomine dei são as denúncias dos crimes cometidos em nome de Deus; em Ensaio
sobre a cegueira, a guerra dos homens contra as mulheres pela expropriação do
corpo; em Ensaio sobre a lucidez, as raízes do terrorismo e cruel
assassinato da mulher do médico e do cão das lágrimas; enfim, não há como dizer
a história do homem sem encontrar em cada encruzilhada dor e sangue.
Essa breve
incursão pela presença do tema na obra do escritor atesta ainda a necessidade
desse texto ser incorporado à sua bibliografia: ao atentar que o alinhamento de
sua obra se dá no seu próprio interior, Alabardas, alabardas, espingardas,
espingardas é a manifestação de alguém que buscou até o último instante
ensaiar um fecho para um projeto literário construído apenas pela motivação de
investigar temas caros ao pensamento humano. Difícil mesmo é que alcancemos
outro escritor com forma com que alcançamos em José Saramago: de postura firme,
nunca esquecido de seu papel enquanto cidadão nem resignado diante das forças
opressoras.
O fato de
não me conter diante dessa obra ora apresentada tem a ver com uma certeza: não
importa ir a livraria e saber que ali não chegará mais uma obra de Saramago.
Importa olhar para estante e ver que há uma obra que pede ao infinito a
releitura. Pelas releituras, sempre terá um livro por vir. Que como atesta
aquele viajante de Viagem a Portugal, “o fim duma viagem é apenas o começo
de outra”.
[Texto
publicado no Letras in.verso e re.verso, em 03 de outubro de 2014]