A casa é
sossegada, centrada na ampla cozinha, e está cheia de cavalos – pequenos
objetos, delicadas esculturas, desenhos. Há cavalos sobre mesas, nas estantes,
nas paredes. A explicação para este, digamos, problema está n’As Pequenas
Memórias livro que não estava ainda publicado quando a entrevista foi feita.
Antes de
franquear a porta da casa de Pilar e Saramago, há que desembarcar em Lanzarote,
a ilha mais oriental das Canárias, salva da aridez por uma perseverante
operação de dessalinização da água do mar, salva da avidez da especulação por
apertadas regras urbanísticas iniciadas por Cesar Manrique [1919-1992]. O
artista moldou amorosamente o território e deixou uma herança de respeito pela
ecologia do lugar, hoje considerado Reserva da Biosfera. A marca mais óbvia
está na Fundação com o seu nome, na casa onde viveu, mas também no rigoroso
funcionamento do turismo em Timanfaya ou no aproveitamento espetacular dos
Jameos del Agua e de outros espaços esculpidos pela natureza.
Este é ainda
um mês quente do fim do Verão de 2006 e todos os dias há notícias de homens e
mulheres exaustos que chegam às ilhas Canárias em frágeis embarcações
sobrelotadas, arriscando tudo para trocar a pobreza exangue de África por uma
miragem europeia.
A ilha é
negra e dura, feita de lava recente, e cada planta protegida dos ventos alísios
por um muro de pedra parece um milagre. Dirá Saramago que para pintar a ilha de
verde basta um pouco de água, e fará desta imagem uma parábola que caberia,
inteira, nos livros que escreve.
No andar de
cima da casa fica o lugar onde José Saramago escreve, em baixo o escritório de
Pilar, com equipamento para os programas de rádio que faz regularmente em
directo e um computador onde se sucedem os e-mails relacionados com ambos.
Do outro
lado da rua, seis jovens catalogam os 20 mil livros do casal, finalmente
arrumados, na novíssima biblioteca em cujo jardim foi plantada uma frágil haste
de oliveira portuguesa. Todos sabem que em pouco tempo a haste se fará árvore,
porque assim foi no jardim da casa, onde pequenos rebentos se tornaram
romãzeiras, alfarrobeiras, palmeiras, uma altíssima araucária.
A entrevista
é gravada na sala, sem interrupções, e começa com Saramago a explicar os
cavalos. “Vou ler-te”, anuncia. Pega numa prova d’As Pequenas Memórias: “O
meu problema com os cavalos é mais pungente, daquelas coisas que
ficam a doer para toda a vida na alma de uma pessoa. Uma irmã da minha
mãe, Maria Elvira de seu nome, estava casada com um certo Francisco Dinis…”
Foto: Alfredo Cunha |
Lanzarote é tão
diferente da Azinhaga, onde nasceste, uma terra ribatejana fértil, com imensa água,
e tão diferente de Lisboa. Os lugares onde vives reflectem-se na sua escrita?
Há um velho
romance que publiquei em 1947, a Terra do Pecado, que devia chamar-se A
Viúva, que nunca mais li mas recordo-me que passa muito pela Azinhaga. A
classe social ali apresentada não é a minha, são grandes proprietários rurais,
que conhecia e sabia como viviam. Algumas situações vividas por mim como
criança aparecem no livro. Na minha poesia pode encontrar-se alusões, de forma
indirecta, transposta, a ambientes campestres.
Muitos anos
mais tarde, aparece o Levantado do Chão. O primeiro projeto foi instalar-me
na Quinta da Cruz da Légua, na aldeia entre a Azinhaga e Santarém, por onde eu
tinha passado. Era um microcosmos, interessava-me saber como eram as relações
de trabalho e de dependência, a presença da Igreja. Conhecia demasiado bem a
Azinhaga e não queria correr o risco de fazer retratos de pessoas próximas. É
nesta altura que se me apresenta o Alentejo, o Lavre. Estávamos em 75, com toda
a confusão, perdi o meu trabalho no Diário de Notícias e pensei ir para o
Lavre. Escrevi uma carta a perguntar se havia maneira de me acomodar lá e
responderam-me: “venha imediatamente, tem todas as condições para estar aqui
tranquilo”. Fiquei num quarto de um prédio de um antigo proprietário – aquilo
tinha sido ocupado – e foi aí que eu recolhi material, falei com muita gente. O
livro está aí.
Estás a
falar sobretudo das pessoas, a pergunta era sobre os lugares.
Sim, são
pessoas e também o lado físico da questão: o sítio, o lugar, as casas, a
paisagem. A primeira ideia a seguir ao Levantado do Chão – ficou atrás o Manual de Pintura e Caligrafia, mas deixemo-lo – foi para O Ano da Morte deRicardo Reis. Assustou-me a ideia de meter-me no sarilho de falar de Fernando
Pessoa e de Ricardo Reis, com os pessoanos todos de Portugal de olho posto no
livro à procura dos disparates. Tinha-me entretanto aparecido a ideia do Memorial,
que nasceu simplesmente de uma frase dita diante do Convento a três ou quatro
pessoas que estavam comigo. Disse, olhando para o Palácio (aquilo que a gente
vê de fora é o palácio, não é o convento): “Gostava de meter isto um dia dentro
de um romance”. E disse isto em voz alta. Se eu tivesse pensado apenas, talvez
o romance não existisse. Mas tinha assumido publicamente um compromisso. Então
deixei o Ricardo Reis em paz e atirei-me ao Memorial do Convento e do
balanço adquirido veio O Ano da Morte de Ricardo Reis. Os dois estão aí.
“O Ano da
Morte de Ricardo Reis” passa-se em Lisboa.
É Lisboa mas
não a Lisboa da ocasião, é um pouco da minha própria memória. Nasci em 1922,
aquilo é 1935 ou 36, portanto andava pelos meus 13 anos a caminho dos 14.
Algumas coisas são autênticas recordações de ambientes, não de factos.
Numa
conversa com uma jornalista brasileira em Lisboa, estávamos a dizer que os
portugueses têm sempre um pé cá e outro lá. E eu de repente disse: “É assim
como se a península se tivesse ido embora”. Uma frase solta, desta maneira.
Continuei a pensar nela, e nasce A Jangada de Pedra. Aparece na altura
da integração dos dois países ibéricos na Europa e o livro foi tomado como um
ataque porque aparentemente assim é: se a península se vai embora é porque não
quer estar na Europa. Um crítico catalão escreveu um artigo em que diz “o que o
José Saramago quer é levar a Europa para o sul, a Península Ibérica puxando a
Europa para o sul”. E de facto…
É aí que
a Espanha se junta a Portugal na tua obra?
Sim, mas
repara que isso tem uma relação forte com algo que eu andava a dizer já há
tempos: em primeiro lugar sou português, depois sou ibérico, e em terceiro
lugar, se me apetecer, sou europeu.
E
apetece-te?
Ninguém sabe
o que é a Europa. O Eduardo Lourenço disse uma vez que a Europa não existe. O
problema sempre foi este: quem manda? Um manda e os outros vão atrás, a
contragosto ou não, não têm outro remédio. Agora é menos fácil identificar quem
manda mas a cabeça não está em Paris nem em Londres, está em Berlim. O Umberto
Eco disse que dentro de 50 anos a Europa será islâmica. Pode acontecer, outras
coisas se viram no passado.
A ideia da
Península Ibérica disparada para o sul era um bocado ingénua, evidentemente,
mas a gente também vive da ingenuidade. Falamos tanto do sul, o sul vítima da
exploração, o sul como ideal, o sul como lugar do paraíso, para onde correm os
turistas sempre… era como se a Península Ibérica, colocando-se ali, fosse o
embrião de um desenvolvimento cultural que reunisse a Europa, a América e a
África e fosse, de uma certa maneira, uma ponte. Ilusões de adolescente, mesmo
se eu já tinha muita idade na altura. Mas o livro está aí. E gostei de que esse
homem tivesse dito que eu queria levar a Europa para o Sul. Tornou-se-me claro
algo que eu apenas intuía confusamente.
Lanzarote é a
tua jangada de pedra?
Tudo são
jangadas e isto não é exactamente a minha, vim parar aqui por acaso, como
sabes, e conheces a história. Não escolhi. É curioso como são as coisas: o
primeiro-ministro do governo que censurou O Evangelho segundo Jesus
Cristo é hoje Presidente da República e não tem vergonha de o ser.
Depois vem
um livro estranho que é a História do Cerco de Lisboa. A primeira ideia era
na linha de O Deserto dos Tártaros do [Dino] Buzzati. Um cerco em
que não se percebia muito bem quem cercava nem quem era cercado. Usemos a
palavra: um pouco kafkiano. Isso andou na minha cabeça durante uma quantidade
de anos até que me dispus a escrever o livro já com um objetivo completamente
diferente. Em princípio, toda a gente parte do cerco de 1385, mas não, os
cercados são os mouros. E entre as figuras simpáticas do livro algumas delas
são mouros.
Estavas a
islamizar a história…
Não tarda
muito chamam-me infiltrado do Islão… Não era um Islão pacífico mas era um Islão
sem terrorismo, vamos pôr a questão assim. Também se pode pensar nas
actividades terroristas dos exércitos quando matavam crianças e mulheres à
espadeirada e queimavam as casas. Isto não mudou muito. Continuamos a ser
aquilo que éramos e vamos continuar, se Deus quiser. E como Deus não parece
querer outra coisa…
Achas que
não mudou muito?
O ser
humano? Não, o ser humano é uma besta. E pior que isso: não temos solução.
Sinceramente, e não o digo para me fazer interessante. Olho para trás, olho
para o agora e imagino o que vem. Não vejo nada que me diga que o Homem tenha
solução. Não resolvemos nada de essencial. Criámos riqueza material, muitas
vezes à custa de reduzir à pobreza, à humilhação e à fome massas humanas
enormes.
E a ciência?
A ciência é
como todas as coisas que saem da nossa cabeça, tem um lado bom, tem um lado
mau, confirme as utilizes. Evidentemente que sim, criámos a ciência, e criámos
até uma coisa que parecia que não estava na tabela: criámos o amor,
inventámo-lo.
Não estava
previsto?
Como é que
poderia estar? Uns quantos animais que andavam por aí, meio macacos, meio
humanos, governados praticamente pelo instinto e que se desenvolveram ao longo
de uma quantidade de anos. Foi preciso inventá-lo.
E isso não
mudou tudo?
Mudou tudo
mas não mudou tudo. Mudou a vida, ou pode mudar a vida, ou influir na vida das
pessoas que experimentam esse tipo de sentimentos, mas no fundo não muda. Não
muda, não muda.
Há sempre
nos teus romances alguma coisa que é redentora, e é sempre
o amor.
Mas durante
quanto tempo? Podemos falar do amor no Memorial, embora não haja aí
palavras de amor.
Um dos
acontecimentos mais extraordinários da minha vida de escritor é ter escrito um
romance com uma grande história de amor – não tenho pejo nenhum de dizê-lo –
sem que nenhum dos dois tenha tido necessidade alguma vez de dizer Gosto de ti,
Amo-te, Os teus olhos são como as estrelas, não sei o quê. Não há nada disso e
não foi intencional. Só no fim é que me dei conta de que não havia uma palavra
de amor, uma só, em todo o livro. Pode parecer deliberado ao leitor, ao
crítico, ao estudioso, mas foi involuntário.
E quando
digo que não temos solução…
Realmente as
pessoas recuperam a vista, de acordo. Realmente há essa figura admirável da
mulher do médico – não porque eu a tenha feito assim mas porque ela é assim.
Mas no fim, quando toda a gente está celebrando o regresso da visão, ela vê o
céu todo branco e julga que chegou a sua vez, que vai perdê-la. Não é assim, e
ela baixa os olhos e diz: “A cidade ainda estava ali”. A possibilidade de viver
juntos é negada ao longo do livro, a não ser esse grupo solidário que se espera
que não tenha sido o único, que tenha havido nessa mesma cidade outros que não
entraram na história.
A frase “A
cidade ainda estava ali” é um aviso, como quem diz: “Vocês aprenderam a lição
ou não aprenderam? Eu ainda aqui estou” Não é tão otimista quanto se crê,
porque eu não sou. Somos uma espécie que fez o que fez, no bom, no mau, no
maravilhoso, no sublime, no horrendo, fizemos o que fizemos. Aqui não se trata
de pôr numa balança o que fizemos de bom e o que fizemos de mau, aqui tínhamos
de pôr a Capela Sistina, ou um quadro do Rembrandt, ou uma sinfonia de Beethoven,
e do outro lado tínhamos de pôr Auschwitz, Buchenwald, todos os horrores, os
genocídios. Eu não sei o que pesa mais, mas o lado negro da História da
Humanidade é de tal modo horrendo que é difícil que a 9ª. Sinfonia sirva para
equilibrar.
Estou
pasmada com este sítio, sobressai o poder da natureza, ao mesmo tempo
destruidor e incrivelmente fértil – tu disseste que basta cair uma
chuvada para isto ficar tudo verde. É isto que me parece marcante.
Sim, mas se
é marcante já o era antes de eu estar aqui. Há aqui uma série de contradições.
Disseste que
não escolheste este sítio, mas na verdade também não o recusaste.
Quando
cheguei aqui senti-me bem. Venho de outro lugar, da lezíria, todo o contrário
de uma terra como esta. Aqui joga o temperamento de cada um. Havendo em mim,
como há, uma tendência tão forte para… não diria o ensimesmamento, a
contemplação… para a solidão. Vivo rodeado de pessoas e no fundo sou muito
solitário. Chegar a esta ilha e subir estes vulcões – agora não, porque já não
posso…
Este grande
aqui atrás, chamado Montanha Branca, subi-o em maio de 1993, quando tinha 70
anos. Fui até lá acima, vê-se dali a ilha toda, de um lado e do outro, a outra
costa e esta costa daqui, e o vale de La Geria, até ao vulcão do norte chamado
La Corona. Foi realmente um dia de glória para mim. Não tinha o propósito de
subir a montanha, fui naquela direção, depois olhei para aquilo, subi um
bocado, 50 metros, “e se eu fosse até lá acima?”, e fui. Não é alpinismo de
primeira qualidade, evidentemente, mas não é fácil porque se resvala, porque
não tens onde agarrar-te, aquilo não é uma montanha no sentido habitual, com rochas,
no fundo aquilo é um cone liso. Desci por outro lado, por um barranco, e descer
é muito pior do que subir, escorreguei, feri-me numa mão. Entre subir e voltar
a casa foram pelo menos quatro horas.
Nunca mais
voltei a subir mas tenho a imagem de estar num ponto alto numa ilha e poder
vê-la praticamente toda. Tive a sorte – não fui com certeza a única pessoa que
o fez – de, por um capricho de adolescente, ter dito: tenho de chegar lá acima.
E cheguei.
Há uns
campos de lava, fora do parque [de Timanfaya], relativamente perto daqui. Uma
pessoa entra por esses campos… É essa coisa da solidão, de estar só, e o vento
que sopra. Senti que nesta ilha havia qualquer coisa que tinha que ver comigo.
Mas tinha que ver comigo como pessoa. Não creio que tenha passado para a
escrita, e disso é que estamos falando. Ou então na escrita já estava.
Não será este
o sítio certo para esta fase da tua vida?
Aí podemos
estar de acordo. O que se pode dizer é que este sítio estava à minha espera.
Andei quilómetros pela ilha e realmente estou bem aqui. Estou bem em Lisboa,
também.
Tenho um
problema com as Finanças espanholas, querem à viva força que pague impostos
aqui. Apesar de ser um tipo suspeito em alguns aspectos, sou um bom
contribuinte, um bom patriota e pago os meus impostos em Portugal. Andamos há
quatro anos num conflito sério que já teve que meter instâncias superiores
governamentais de um lado e do outro, não sei como isto vai acabar. Portanto,
também há lados incómodos e vamos ver como é que esta questão se resolve.
Viajas muito
mas é aqui que as pessoas vêm visitar-te. Percebi que muita gente vem
aqui, sentam-se naquela cozinha.
Esteve cá o
Mário Soares, quando viemos para aqui, em 1993. Foi um gesto muito simpático
que lhe agradeço, embora ao longo da vida ele e eu tenhamos tido as nossas
turras. Nessa altura era Presidente da República, fui despedir-me dele,
expliquei-lhe por que vinha para aqui. Ele veio dar conferências em Tenerife,
aproveitou e veio visitar-me. Vinham com ele o Manuel Alegre, a Maria de Jesus
Barroso, o José Manuel dos Santos. Tem vindo aqui muita gente. Estiveram cá não
há muito tempo o Bertolucci, o Pedro Almodóvar, o Rodriguez Zapatero.
Esta é a
tua casa, o lugar onde tens os teus livros?
Os livros
estão aqui. Em Lisboa tenho uma centena, aqui tenho 20 mil ou coisa que o
valha. Pode dizer-se que a casa do escritor é o lugar onde estão os seus
livros. Tinha de ser aqui. A minha primeira ideia era passar uma temporada em
cada sítio, mas pouco a pouco, pela lógica do emprego do tempo e das
deslocações, foi tomando mais evidência que o lugar para estar é aqui. O que
não significa que não me sinta bem em Lisboa.
Disseste que
o homem não tem solução mas não há sempre uma espécie de parábola nos teus
romances?
O risco que
os meus romances correm, e que assumem, é o de parecer que têm lições morais,
se se quiser malevolamente olhá-los assim. Sou o primeiro a dizer que correm
esse risco. Mas não é disso que se trata.
Não tens a
intenção de mudar o mundo?
A minha
única intenção é dizer como o mundo é, não venho dizer como transformá-lo. O
estranho é que só volto a publicar em 1966, com Os Poemas Possíveis que
tem duas fontes: um episódio sentimental que vivi nessa época e a leitura de O
Filho do Homem de José Régio. Esse livro, não sei porquê, sacudiu-me.
Como se estivesse a dizer a mim mesmo: eu também sou capaz. Em 1970 aparece o Provavelmente Alegria [poemas], depois publico crónicas que vinha publicando no Jornal
do Fundão e n’A Capital [Deste Mundo e do Outro, 1971]. E aqui estamos à
borda da Revolução.
Em 75,
quando publico O Ano de 1993, tenho 53 anos. O que teria acontecido se
tivesse continuado a escrever depois do primeiro livro? Apesar de tudo, escrevi
outro romance, Claraboia.
Não conheço
esse livro.
Ninguém
conhece, nunca publiquei. Tem uma história com muita piada, é a vida dentro de
um prédio que tem uma clarabóia na escada. É um pouco a história do Diabo
Coxo do Vélez de Guevara [Écija,1579 - Madrid, 1644] que levantava os
telhados das casas para ver o que estava dentro. Tem um antecedente literário e
se calhar não é o único. Acabei o livro e não o levei a nenhum editor, não sei
porquê. Um amigo meu, o desenhador Figueiredo Sobral, que fez desenhos para
contos meus nessa época, trabalhava na Editorial Notícias, da Empresa Nacional
de Publicidade. Disse-me um dia: “Dá cá o livro que eu vou levá-lo, pode ser
que eles publiquem”. Como tantas vezes acontece, a vida separou-nos, não voltei
a vê-lo.
Só havia
um exemplar?
Só um
exemplar, escrito à máquina. Isto deve ter sido no princípio dos anos 1950.
Para mim, o livro estava perdido. Em 1987 ou 88, recebo uma carta da Empresa
Nacional de Publicidade onde diziam que, reorganizando os arquivos, tinham
encontrado um original com o meu nome, informavam-me disso e manifestavam
interesse em publicá-lo. Fui lá, sou fulano, sim senhor, está aqui o livro, se
quiser nós podemos publicá-lo. Não, não quero. Um livro desaparecido durante
quase 40 anos reaparece!
Portanto, se
tivesses continuado a escrever…
Se escrevi
dois romances, por que não escreveria um terceiro? Pois não, a coisa ficou
assim. Não sei o que teria acontecido. Perguntam-me: ficou todo esse tempo a
ganhar experiência? Não, simplesmente não tinha nada para dizer. Mas há aqui
três tempos. Um é o tempo de silêncio até 1966, depois o tempo intermédio que
começa com Os Poemas Possíveis e que vai terminar em 1975 com O Ano de
1993. Em 1977 começa um período de tenteio, com o Manual de Pintura e
Caligrafia, o livro de contos – Objecto Quase, e o Levantado do Chão em
1980.
O Manual de
Pintura e Caligrafia sai nessa época mas eu já vinha a escrevê-lo há
tempos. Alguma crítica considera o mais interessante que eu fiz porque é,
supostamente, mais moderno na construção, mas tínhamos de saber de que é que
estamos a falar porque o moderno de 1987 não é o moderno de 20 anos depois. São
coisas que eles dizem.
E depois
aparece o Levantado do Chão e aí começa realmente outra coisa, quando eu
tenho 58 anos. No Memorial do Convento tenho 60.
Começas
outra vida?
Boa idade
para ter juízo. Não parece ser uma idade em que se deva começar uma carreira de
escritor que será, parece que está demonstrado, comparado com o que foi feito
antes, a parte séria de um trabalho.
De um
trabalho que também tem dois tempos, um que acaba com O Evangelho segundo Jesus Cristo e outro que começa com o Ensaio sobre a Cegueira. Disseste
que são parábolas, eu prefiro dizer alegorias.
Numa
conferência que dei em Turim, a que chamei A Estátua e a Pedra, tentava
explicar a diferença destes tempos: até ao Evangelho segundo Jesus Cristo,
andei a descrever uma estátua, o lado de fora da pedra, a superfície. É como se
a partir do Ensaio sobre a Cegueira eu tivesse passado para o interior
da pedra, lá onde a pedra não sabe que é estátua. Porque a pedra de dentro não
sabe que é estátua.
Nessa altura
já vivias em Lanzarote?
O Ensaio
sobre a Cegueira começou a ser escrito em Lisboa, dez páginas, nada mais.
E talvez não seja uma casualidade, aqui podíamos discutir, examinar isto até à
saciedade: se o tivesse escrito em Lisboa, seria a mesma coisa que o Ensaio
sobre a Cegueira escrito em Lanzarote? Enfim, fica a pergunta no ar, que
não tem resposta.
É um
facto que não poderias ter escrito o Ensaio sobre a Cegueira aos 30
anos. É um livro de maturidade.
Aos 30 anos
não, claro que não. É um livro de maturidade e é um livro de assombro. Como se
eu me perguntasse constantemente: como é que não conseguimos ser outra coisa?
Ainda tens
essa pergunta?
Ainda tenho,
e cada vez mais. Não somos boa gente.
Por que é que
escreveste sobre a infância? É uma tendência natural quando se chega
a certa altura de vida?
Não creio
que seja, nem toda a gente o faz. A ideia deste livro [As Pequenas Memórias, 2006] tem mais de 20 anos mas apareciam outras ideias, para mim mais
interessantes ou mais importantes nesse momento. Até que chegou a hora. Pensei:
agora é que tem de ser, vou acabar o livro.
E foi
rápido?
Não foi
muito rápido porque tive uns problemas, essa história do soluço que não desejo
nem ao meu pior inimigo. Um mês e meio de soluços contínuos, de três em três
segundos, dia e noite. Três ou quatro quilos foram-se embora e ainda não os
recuperei. Preocupante, porque se tu tens soluços não dormes. Se apesar de tudo
tens a sorte de entrar no sono, enquanto dormes não soluças. Mas abres os olhos
e imediatamente recomeçam. Isto arrasou-me. Também me arrasou a medicação,
causou-me perdas de equilíbrio. Foi funesto, realmente.
Estavas
ainda doente quando acabaste o livro?
Em maio do
ano passado tive um descolamento de retina, fui operado em Barcelona. No fim de
maio, ainda com o olho tapado da intervenção cirúrgica, acabo As Intermitências da Morte e depois aparece-me o soluço. Foi já este ano. O soluço durou um
mês e meio, as consequências arrastaram-se, posso dizer, praticamente até ao
dia de hoje. Mas já estou outra coisa, já estou ressuscitado.
A notícia de
que tinhas escrito as Pequenas Memórias aparece na mesma altura em
que aparece o livro de Günter Grass [Descascando a Cebola, 2006], toda a
gente os relacionou.
Por favor,
não tem nada que ver.
O que têm em
comum é só olharem para trás e coincidirem na publicação?
Sim, claro.
Eu quis, de alguma forma, recuperar o miúdo que fui. O livro não segue uma
cronologia, são fragmentos que podem ter uma página, duas, três, ou meia
página. É como se o livro tivesse sido escrito de acordo com a sequência das
recordações tal como elas se me apresentavam. Eu chamava-lhe O Livro das
Tentações, recordas-te disso? Mas depois achei que não, embora o mundo para
uma criança seja uma tentação contínua. Mas era preciso explicar isso para que
o leitor não tivesse dúvidas sobre a lógica do título.
Isso tinha
nascido no tempo em que eu andava com o Memorial do Convento, de uma ideia
que estava fora do meu alcance, e que era que a santidade perturba a natureza.
Uma ideia inspirada nas Tentações de Santo Antão do Bosch, em que aquilo
que a gente vê é uma espécie de rebelião da natureza, representada num caso
pela beleza, na maior parte dos casos pelo horror, pelo grotesco, pelo disforme
e tudo isso. A natureza é provocada pela santidade e manifesta-se.
Mas não
tardei muito tempo a perceber que não tinha unhas para tocar esta viola. Isto
tinha de ser um Eduardo Lourenço ou alguma pessoa mais por aí. Deixei ficar o
título até ao momento em que realmente decidi acabar o livro, porque já tinha
muita coisa escrita, e percebi que não fazia qualquer sentido, tinha de assumir
que de facto não, vamos arranjar outro título. E saiu este, as Pequenas
Memórias. São as pequenas memórias de um tempo em que eu era pequeno. Não tem
nada que ver com o Günter Grass, é outro projeto, a intenção é outra. Eu só
quis pegar na criança, e a criança não tem idade para se matricular nas SS.
E não vais
escrever mais memórias?
A
continuação? Não. O livro acaba com um episódio na aldeia, teria ou ia a
caminho dos 16 anos. O resto não me interessa. Eu nunca escreveria uma
autobiografia da minha idade adulta, dos triunfos ou do Prémio Nobel.
Mas
publicaste os Cadernos de Lanzarote.
Sim, que
curiosamente acabaram em 1997. E eu embora tenha material para 1998, decidi não
escrever.
Mantens um
diário?
Não. Os Cadernos
de Lanzarote são um diário, durante esses cinco anos. Se não é o caso do
Nobel, é possível que eu tivesse continuado. Agora, escrever o ano de 1998 e os
seguintes para ter de falar todos os dias do Nobel, ou das consequências do
Nobel, não. Acabou aqui. Acabou.
Disse-se que
o livro do Günter Grass era uma operação comercial. Estás de acordo?
Nisso não
acredito. O Vasco Graça Moura também disse que ainda bem que o Evangelho
Segundo Jesus Cristo foi proibido, porque assim vendi mais livros. Em
declarações à imprensa, defendi o Grass. Ele cometeu um erro aos 17 anos. E a
vida depois não conta? Vamos ficar a martelar o homem? Ele já tinha dito que
tinha entrado no exército. Enfim, não podia negar-se, e toda a gente aceitou
isso, tinha sido ferido, tinha 17 anos, parece que não disparou um tiro sequer.
Mas de facto quando ele disse que tinha estado no exército, sabia que tinha
estado nas SS. E calou.
E depois há
outra circunstância que é o facto de o Günter Grass se ter apresentado como uma
consciência moral da Alemanha, tendo ele próprio essa mancha. Além disso, está
claríssimo que ele se apresentou voluntariamente nas SS.
Como é que
ele viveu com esse segredo? Não é uma situação literariamente
fascinante?
É
fascinante. A gente faz algumas coisas mal na vida e vivemos com elas. Ele deve
ter tido dias maus, mas viveu a sua vida com essa sombra no passado. Podia ter
deixado ficar mas provavelmente um dia a verdade sairia ao de cima e ele quis,
suponho que foi assim, que essa verdade saísse da sua boca. Demasiado tarde?
Quem é que agora julga? Realmente saiu tarde. E sobretudo porque escondeu.
Porque ao dizer “estive no exército” estava a esconder, estava a dizer meia
verdade.
A verdade é que
nós não vivemos aquele momento na Alemanha. Todos os juízos morais esbarram
nisso. O que é que nós teríamos feito?
O problema
aqui não é o que nós teríamos feito. Eu também fui para a Mocidade [Portuguesa],
a inscrição era obrigatória, isso é outra coisa, e a Mocidade Portuguesa, por
muito má que fosse, não era as SS. A questão central não é essa, é o papel que
o Günter Grass assumiu ao longo da vida. E estava lá aquilo. Podia ter dito:
com que direito estou eu a dar lições de moral à comunidade se tenho essa nódoa
lá atrás? Deve ter feito essa reflexão agora.
Na tua vida
há um facto marcante, tens o antes do Nobel e o depois do Nobel. Mas há também
a Pilar.
É o que eu
ia a dizer, há outra coisa marcante. Ia interromper-te. Há um antes do Nobel e
um depois do Nobel, e há um antes da Pilar e um depois da Pilar.
O que é que
mudou na tua vida?
Tudo. Essa é
a grande mudança. Ganhar o Prémio Nobel… se escreves, e não escreves mal, e os
outros dão por isso, pode acontecer. Mas é muito difícil acontecer o que
aconteceu com a Pilar, porque eu estava em Lisboa, ela estava em Sevilha. Como
é que estes dois iam encontrar-se alguma vez? É ela que viaja de Sevilha a
Lisboa porque me tinha lido – O Ano da Morte de Ricardo Reis e o Memorial
do Convento – e queria conhecer-me. Não veio à procura de uma aventura.
Ela tinha
ido a Lisboa com uns amigos e telefonou para minha casa: “Gosto muito dos seus
livros, chamo-me Pilar del Rio, sou de Sevilha. Tem um minuto?” Ela estava no
[Hotel] Mundial, combinámos encontrar-nos às quatro horas da tarde de um
sábado. Lá fui, não sabia quem ela era, não estava muito habituado a que
acontecessem coisas assim mas enfim… Aparece-me e quando olho para ela não
acredito porque era uma mulher bonita, elegante. Levantei-me, apresentámo-nos,
conversámos. Ela não tinha muito tempo, conversámos sobre o Fernando Pessoa, o
Ricardo Reis, o Memorial. Fomos ao Cemitério dos Prazeres para mostrar-lhe o
jazigo do Pessoa, curiosamente estava partida a cruz que estava em cima do
jazigo. Alguém tinha partido a cruz e a tinha levado, algum admirador, algum
necrófilo de alguma seita iniciática. Comentei isso mas ninguém fez caso.
Depois fomos aos Jerónimos.
Em que dia?
Claro que sabes a data.
Catorze de
junho de 1986. Levei-a ao hotel, trocámos direções e assim acabou. Alguns
relógios aqui de casa estão parados às quatro horas da tarde, os que não
funcionam. Há sempre relógios que não funcionam. Ela foi-se embora, mantivemos
contacto telefónico, não muito frequente em todo o caso. Ela mandou-me uma ou
duas vezes um artigo que tinham sido escritos lá sobre os meus livros. Eu tinha
de dar uma conferência em Barcelona e em Granada, em Outubro de 1986. Então aí
escrevo a carta mais inteligente de toda a minha vida. Porque eu não sabia nada
dela, não sabia se estava casada, se estava divorciada, se era solteira. “Vou
aí, tenho uma conferência em Barcelona e em Granada”, e acrescentei: “Se as
circunstâncias da tua vida o permitem, gostaria de que nos encontrássemos” e
tal e tal. Elegantíssimo.
E ela
percebeu o que queria dizer?
Ela
respondeu que as circunstâncias da sua vida o permitiam, entendeu o que eu
queria dizer. Aí começou a nossa relação, depois ela foi viver para Lisboa,
deixou tudo, Sevilha, amigos, família, casámos em 1988. A Pilar é uma pessoa
fora do comum em tudo, de uma exigência consigo mesma quase doentia. Ela
considera que está neste mundo para servir, coisa que lhe vem da adolescência –
ela foi monja teresiana entre os 13 anos e os 20. De certa maneira, continua a
ser monja. Já não tem nada que ver com a Igreja, ficou-lhe lá por essa educação
mas também porque ela era um campo fértil para isso.
Eu tinha 63
anos, ela tinha 36, alguns dos meus amigos diziam “o que é que vais fazer, é
uma loucura”.
Foi o melhor
que podia ter acontecido na minha vida. Não quero falar agora do meu passado
sentimental, cada um teve e tem o seu, mas não esperava encontrar uma pessoa
como a Pilar. Não estava escrito. Ou então estava escrito numa página qualquer
do livro do destino a que eu nunca tinha chegado, nunca lá tinha ido ver. Ainda
bem para mim. E também quero pensar que ainda bem para ela.
Assim
parece.
Creio que
sim. Chateia um bocado agora, tenho 84 anos quase e estes 20 anos com ela foram
bem vividos, foram anos bons, foram anos felizes, e chateia-me, chateia-me,
chateia-me profundamente pensar que viverei mais três ou quatro anos, numa
hipótese bastante favorável, chateia-me que seja tão pouco. Percebes? Por
várias razões, uma é que uma pessoa não está interessada em morrer, salvo
alguma exceção. E a outra é como eu às vezes digo: viver é estar, morrer é já
não estar. E isso é que chateia, é que já não estás. Eu posso imaginar esta
casa com todo o trabalho que a Pilar vai continuar a ter com a biblioteca, a gestão
dos meus livros, neste mesmo salão, ou na cozinha onde sempre vamos parar, ou
no jardim que é aqui ao lado. Mas a filhadaputice é que eu já não estou.
E agora
pensas muito nisso?
Penso mais
do que pensava antes. Não é uma expressão do medo da morte, eu não tenho medo.
Não sei o que acontecerá no momento. Tive medo da morte aí pelos meus 16 ou 17
anos, tive a consciência claríssima de que queria morrer. Foi a minha
descoberta pessoal da morte. Já tinha assistido a funerais mas aquilo não tinha
nada que ver comigo. E houve um momento, que durou duas semanas ou talvez mais,
em que eu ia na rua e parava como que fulminado com esta ideia: terás de
morrer. Depois, ao longo do tempo, mesmo em situações complicadas, nunca pensei
que me pudesse acontecer qualquer coisa definitivamente grave. E é esta coisa,
estavas e já não estás. Isso é que é realmente a morte.
É verdade
que a Pilar te apareceu numa idade em que muitas pessoas já não estão à espera
de nada.
O melhor da
minha vida chegou fora do tempo habitual. Acho que foi melhor assim, porque a
velhice pode ser uma coisa muito chata. A decadência física, a perda da
curiosidade, a perda da memória, todas essas coisas que vêm com a idade, eu
felizmente pelo menos até agora ainda não fui alcançado por isso, e então posso
dizer que é uma sorte dos diabos. Ter ao mesmo tempo – porque é praticamente ao
mesmo tempo – uma obra literária que tem algum mérito, o que é reconhecido
pelos leitores, que foi reconhecido pelo Prémio, num tempo em que
sentimentalmente encontro uma pessoa como a Pilar, não só pelo facto de
conhecê-la mas também porque era a melhor companheira que podia desejar para
viver este tempo, em todos os aspectos. O Eduardo Lourenço no outro dia
dizia-me: “Eh pá, a tua vida é um milagre!”.
E achas que é?
Talvez seja.
Porque nada podia ser previsto, nada. A partir da adolescência podes começar a
fazer uma ideia do que será o futuro, ou pelo menos o futuro que tu queres, ou
o futuro que tu desejarias, a ver se alguém me ajuda a chegar lá. Nasci onde
nasci, vivi como vivi, trabalhei como serralheiro mecânico, durante um tempo
que não foi muito, mas fui operário – nem me vanglorio nem me desprezo a mim
mesmo por esse facto. Uma vida que não tem um objectivo, percebes? Se tu
entrares na Faculdade de Medicina é porque queres ser médico, na Faculdade de
Direito vais ser advogado ou juiz. E eu não. Andei de emprego em emprego: Caixa
de Previdência da Cerâmica, depois a Companhia Previdente que embora aquilo que
alguns escrevedores dizem não e uma companhia de seguros, era uma companhia
metalomecânica; vou para os Estúdios Cor, conheço gente.
Não é nos
Estúdios Cor que começas um novo caminho?
É um momento
importante da minha vida. O diretor literário dos Estúdios Cor era o Nataniel
Costa, uma pessoa interessantíssima, casado com a Celeste Andrade, que era
sobrinha do João Pedro de Andrade, crítico literário e autor teatral. O
Nataniel entrou na carreira diplomática, o que o obrigou a sair para um posto
em França.
A gente
reunia-se no café Chiado. E um dia em torno do café, o Fernando Piteira Santos,
malta assim mais ou menos conspirativa e conspiradora, o Nataniel saiu e
disse-me “queria falar consigo, não se importa de me acompanhar?” E saímos.
“Como sabe
eu vou para fora, tenho de deixar os Estúdios Cor, claro que continuarei a
acompanhar de longe mas tenho de deixar, e gostaria, se você quisesse, que
tomasse o meu lugar na editora.” Tínhamos uma boa relação, mas não de
amigos-amigos, era uma boa relação, sem mais. Disse-lhe: “É um caso a pensar.
Mas por que é que você pensou em mim para isso?” E ele teve uma resposta:
“Claro que não faltariam pessoas a quem eu convidar, mas pelo menos algumas delas
a primeira coisa que fariam seria esfaquear-me pelas costas, e eu sei que você
não é desses”. Bom, de acordo, eu efetivamente não era desses.
Nunca foste
desses de esfaquear pelas costas?
Nunca fui
desses. Há um episódio anterior. Eu encontrava-me com alguns amigos que não
tinham nada que ver com as letras no Café Chiado. Um dia, estava sozinho, pára
um táxi em frente da porta, e sai o Humberto d’Ávila, olhando para um lado para
o outro e de repente põe os olhos em mim. Nunca tínhamos falado. Eu conhecia-o,
sabia quem ele era, ele conhecia-me a mim. “Tenho aqui dois bilhetes para um
concerto no São Carlos. Quer vir comigo?”
Era de um
violoncelista, salvo erro o Pierre Fournier [Paris, 1906-1986]. E lá fui eu,
que conhecia o São Carlos dos tempos da ópera, quando ia com 18 ou 19 anos para
o galinheiro porque o meu pai, que era polícia, conhecia os porteiros e eles
deixavam-me entrar. Mas estar sentado na plateia do São Carlos nunca tinha acontecido.
Se o Humberto d’Ávila tivesse visto outra pessoa que lhe fosse mais próxima…
mas quis o acaso, ou o destino, que fosse comigo. E isso também mudou a minha
vida, porque a partir daí, embora continuasse com os mesmos amigos passei
também a estar com outras mesas onde estavam, por exemplo, o Abelaira, o Zé
Gomes, o Piteira, e isso foi uma entrada num mundo que não era o meu, e onde
está o Nataniel com quem depois aparece esta conversa.
Os milagres
acontecem, mas as pessoas têm de estar a jeito.
A gente tem
de estar lá no sítio. Depois, comecei uma carreira literária sem grandes
objectivos, com Os Poemas Possíveis, o Provavelmente Alegria. Aonde é que
isto me leva? Eu próprio não sabia. Aquilo que me faz perceber que há um lugar
onde tenho de chegar é o Levantado do Chão. As coisas iam acontecendo, após
um livro tinha a ideia de outro e escrevia. Não vou agora pensar em forças
superiores, não tem nada que ver com isso. Há um poema meu n’Os Poemas
Possíveis que foi escrito aos 20 ou 21 anos, qualquer coisa assim, que
acaba desta maneira:
“Que quem se
cala quando me calei / Não poderá morrer sem dizer tudo.” ["Poema à boca
fechada", Os Poemas Possíveis, 1966]
A gente
já sabe que não diz tudo nem poderá dizer tudo, mas é como se houvesse algo que
tinha de crescer e que crescia de uma forma diferente daquilo que é habitual,
crescia mais devagar e eu tinha de ter a paciência de esperar que isso
acontecesse, e não forçar, não escrever depois de Clarabóia. O que é que eu
escreveria mais? Em que direção é que eu iria? Foi preciso vivê-lo para saber.
Agora sabemos.
O que estás
a escrever agora?
Tenho uma
ideia para um livro mas é muito difícil, muito difícil.
Já tens
título?
Teria, mas o
problema é que lhe falta o miolo. Tenho de deixar que a coisa ande por cá, não
mexer muito nela, não pensar muito e um dia pode ser que as coisas se me
apresentem mais claras. Estou centrado nisso mas não tenho a certeza do que
possa dar. [Este livro virá a ser A Viagem do Elefante, publicado em 2008].
Hoje em dia
lês muito? O que procuras na leitura?
Ainda leio,
leio. Não vou dizer que agora, sobretudo, releio, embora isso aconteça. Mas
cansa-me ler um romance, o que não está bem. Então sou autor de romances e isto
quer dizer que os meus romances sim e os outros não? Não é isso, evidentemente,
sou capaz de reconhecer um bom livro quando o encontro. Parece que tenho um
certo instinto para ir a um livro que, por isto ou por aquilo, sinto que
aquele, sim, vale a pena. Leio muita coisa que não tem que ver com literatura,
tem que ver com filosofia, com história, com astrofísica.
Imagino que
leste muita ficção e daí a minha pergunta. Agora é diferente?
Sim, agora é
diferente. Recordo-me muitas vezes de uma frase do Alexandre O’Neill a
propósito da escrita. Ele dizia: “Não contes a vidinha”. E a impressão que me
dá a maior parte do que se escreve hoje em Portugal é que se conta a vidinha.
Francamente, não creio que valha a pena.
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* Entrevista publicada na revista Egoísta de março de 2007. Copiada a partir do site da Ana Sousa Dias