(Na ocasião José Saramago publica A viagem do elefante; além do romance, fala sobre a adaptação de Ensaio sobre a cegueira para o cinema).
José
Saramago num sábado à tarde. Sala aquecida, luz fria de um Inverno que ainda
não é, chilreio de meninos que passam no bairro. Talvez de alguns pássaros,
também. Ele parece ser maior do que a casa; melhor, as pernas parecem não caber
no sofá, no espaço disponível. Troca-as, destroca-as, o joelho sempre erguido e
pontiagudo. Tem ainda a imponência de um gigante. Mas agora seco, delgado –
como o avô Jerónimo – o cabelo ralo, um fio de voz. De muitas palavras – ao
contrário do avô Jerónimo. Nessa tarde, Saramago foi assim.
Ganhou peso,
tem uma espécie de protuberânciazinha no lugar da barriga. Há um ano julgou que
morria. Pensou que não avançaria nas 40 páginas já escritas. Avançou. Ganhou
peso. Ou, como Saramago diria, porque é muito ordenado no pensamento, ganhou
peso, avançou. Chegou ao seu destino. Escreveu A Viagem do Elefante.
Saramago
empenhou na escrita do livro a sua palavra e a sua vida – como se pode ler. Por
agora, o destino é esse. Depois, não pode ser outro senão a morte. Conversa com
um homem lúcido.
O livro relata
a viagem de um elefante, presente de casamento do rei Dom João III e Dona
Catarina a Maximiliano de Áustria, de Lisboa a Viena. É uma “visita sentimental
de um bruto paquiderme”, que passa por Valladolid, o mar, Génova, as montanhas;
Viena, por fim. Passa por lobos e desfiladeiros, aldeias curiosas, em ambiente
de campanha. Atravessa a Igreja Católica sedenta de um milagre e as lutas
internas com o luteranismo. O condutor do elefante não é aquele que conduz a
história – esse papel fica para o narrador. Tem um nome indiano que significa
branco. E o elefante, quem é? E para onde vai, além de Viena?
Começamos
pelo livro: “A ressurreição, afinal, estava sobretudo, dependente da livre
vontade de lázaro e não dos poderes milagrosos, por muito sublimes que fossem,
do nazareno. Se lázaro ressuscitou foi porque lhe falaram com bons modos, tão
simples quanto isso”. Na sua doença, foi você que quis viver ou foi Pilar que
lhe falou com bons modos?
Eu não lhe
podia falar com maus modos. Nem tinha forças. E ela muito menos. Comunicávamos
com as frases que eu conseguia arrumar na minha cabeça, entre o cá e o lá em
que me encontrei numa fase – demasiado longa, para meu gosto. Salvar-me,
transformou-se no objectivo e desejo de todos os meus amigos, e, no caso de Pilar,
numa obsessão. Enfim, escapei. Dizer que lhe devo a vida… Devo-lhe a vida a
ela, aos médicos, a toda a gente que me manteve à tona, e também devo a vida a
mim mesmo.
Antes disso,
estava entre a consciência e a inconsciência?
Tenho a
memória de que qualquer coisa na minha cabeça entrava em deriva, e eu
deixava-me ir. Não era ir atrás dos pensamentos, porque, em rigor, não posso
dizer que estava pensando. No quarto, já com largos períodos de consciência
total, ficava por vezes numa espécie de limbo. E eu via isso. Era como se fosse
um ecrã. A comparação maior é o céu negro com quatro estrelas. Mas no meu caso
não eram estrelas. Eram simplesmente quatro pontos brancos, dispostos em
quadrilátero, não regular. Era para mim claríssimo, e defenderia essa ideia contra
quem fosse, que eu era aquele quadrilátero.
Como se se
visse de fora?
Sim. Esta
complicadíssima experiência teve outro efeito: usamos uma linguagem que não é
sempre a mesma, que vai variando consoante os tempos que vivemos. Somos um
armazém de sedimentos, ou extractos linguísticos. São os que usámos e retivemos
nos diferentes períodos da nossa vida. Claro que quando estava na aldeia, na
minha adolescência, tinha uma linguagem, não só da época como do lugar. E ficou
cá. Quando a minha vida mudou, em Lisboa, e aos 24 anos publico um livro, já
era outra pessoa, outra linguagem, outro modo de entender as coisas.
No livro,
dois personagens mudam de nome. O condutor do elefante passa de Subhro a Fritz
e o elefante de Salomão a Solimão. Como se uma palavra diferente dissesse
respeito a uma outra identidade.
Exacto. O
que é que aconteceu durante a minha doença? É que a ordem destes sedimentos
alterou-se. Encontro-me diante de uma evidência, que demonstraria com o próprio
livro. Este livro está escrito de uma maneira que é simultaneamente moderna e
quase arcaica. Algumas coisas que estavam lá no fundo, nessa revolução interior
de extractos linguísticos, passaram à superfície. Na hora de escrever o livro
apresentaram-se-me construções frásicas, certas utilizações de verbos, palavras
que não recordava ter usado nos últimos 40 anos.
É pela
palavra que nos fazemos, que nos criamos, que nos salvamos.
Não temos
outra coisa. É que não temos outra coisa. Somos as palavras que usamos. A nossa
vida é isso. Se eu digo: estou pensando, e me perguntar: “em quê?”, a minha
resposta só pode ser com palavras. Não posso tirar o pensamento da cabeça e
pô-lo em cima da mesa: aqui está o que eu estava pensando.
O livro
anterior a este é um livro de memórias, em que se volta, sobretudo, para a
infância – um sedimento muito antigo, onde as palavras eram outras. O
inconsciente tê-lo-á guinado para aquele lado? Como é que passa de um livro ao
outro?
O livro d'As Pequenas Memórias é escrito com linguagem que uso hoje. No caso d’A
Viagem do Elefante é como se houvesse outra mão que me guiasse. Para que eu
aceitasse, recebesse e utilizasse palavras e expressões. O que mais caracteriza
este livro é o tom narrativo, o modo de narrar. O narrador é um personagem numa
história que não é sua. Sempre defendi a ideia de que o narrador não existe.
Neste livro resolvo a questão – pelo menos resolvo-a para mim, que é a única
coisa que importa. Passando a considerar-me autor sim, mas autor-narrador, não
dissociado. Assumo tudo.
É o narrador-autor,
aquele que conduz a viagem. Mas está também nas outras personagens? No cornaca
(aquele que guia o elefante), no comandante (que se pode imaginar ser um
alter-ego seu), no elefante.
Provavelmente
estou em todas as personagens. Os dados históricos comprovados que se referem à
viagem deste elefante cabem numa página, e ainda sobra. Portanto, este livro é
um livro de invenção. As personagens históricas, o arquiduque, a arquiduquesa,
D. João III, a Rainha Catarina, vejo-os mais como comparsas – embora estes
últimos tenham um papel, o que têm para dizer tem importância no contexto do
livro. O resto, o capitão de cavalaria, os austríacos, toda a gente que se vai
encontrando pelo caminho, são produto da imaginação. Eu não seria o arquiduque,
embora certas manifestações poderia aceitar como minhas. A arquiduquesa é uma
sombra que passa, destinada a parir 16 vezes. E temos o elefante.
É fácil
olhar para ele como metáfora da própria vida.
É. Não há
nada que o elefante faça que possa ser interpretado como consequência de um
pensamento seu.
Diz, aliás,
ao longo do livro, que não se pode saber o que o elefante pensa.
Ele não tem
palavras, não usa palavras. Se os elefantes pensam, eu não sei como é que
pensam. Se nem sei muito bem como é que pensa o meu cérebro… O Torga, nos
“Bichos”, que são uns contos magníficos, antropomorfizou tudo – aqueles bichos
pensam. Eu não queria isso. Queria que o meu elefante fosse levado de Lisboa a
Viena como um animal que não sabe onde o levam, que não tem nenhuma ideia de
qual possa ser o seu destino e que vai andando, porque outros o levam, e também
vão andando. Realmente, é um pouco como a vida. O que dá sentido a este livro é
o final – o final da vida deste animal, Salomão. Como tinha que acontecer,
esfolam-no. A pele é oferecida pelo arquiduque a um conde qualquer.
E há aquele
detalhe medonho: de usarem as patas para pôr bengalas e bastões. As mesmas
patas que poderiam ter produzido um milagre, no miolo do livro.
Sem isso,
provavelmente o livro não existiria. A viagem do elefante, a autêntica viagem,
é o que o leva a isso. As suas pernas andaram milhares de quilómetros,
estiveram na Índia antes de o trazerem para Lisboa, serviram-no. E essas mesmas
pernas são cortadas e transformadas irrisoriamente num recipiente para pôr as
bengalas, os guarda-chuvas, as sombrinhas. Esse é o destino do elefante que faz
essa viagem, com episódios épicos, e que acabou ali. A epígrafe do livro
acompanha isto: “Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam”. Claro que em
termos latos, aquilo que nos espera é sempre a mesma coisa: a morte. Neste
caso, não é só a morte, é o destino final. Caricato. Disseram-me que até há
pouco tempo, essas patas ainda estavam no lugar onde tinham sido postas.
Escreve na
primeira parte do livro: “É a lei da vida: triunfo e olvido”. Perguntam o que
vai acontecer ao elefante, e a resposta é: vão dar-lhe umas palmadas – que nós
diríamos nas costas - vai haver muita gente nas ruas, e depois esquecem-se
dele. Consigo, também vai ser assim?
Inevitavelmente.
Não vale a pena que tenhamos ilusões. Pode não acontecer em 50 anos, e talvez
em 100 anos ainda haja quem me leia. Depois passo a ser um nome. Um nome que
algum excêntrico vai ler e conhecerá. Quem é que, no momento em que estamos
aqui a conversar, está a ler o Camões? – para além dos que tenham de lê-lo por
obrigação. Quem é que está a ler o Gil Vicente, Dom Francisco Manuel de Melo,
ou Padre António Vieira? Quem é que tem paciência para ler sermões, mesmo que
eles sejam um esplendor?
Desde quando
tem a noção de que a sua vida será também triunfo e olvido?
Desde
sempre. Este pendor relativizante começou por mim mesmo. Depois do Ensaio
sobre a Cegueira, disse que se pudesse ser recordado por alguma coisa no
futuro, que me recordassem como o criador do Cão das Lágrimas. Já vê que é
pedir bastante pouco… Ninguém escreve para o futuro, ao contrário do que se
julga. Somos pessoas do presente que escrevemos para o presente. Também pode
acontecer que os livros deixem de ser livros e que o nome do autor continue
como uma referência.
Abrimos uma
chaveta para dizer: José Saramago, aquele que inventou o Cão das Lágrimas,
escritor, comunista. Pensamos nas palavras cardeais do seu universo: ironia,
compaixão, imaginação.
Acabamos por
converter-nos em conceitos. Já não temos existência, mas continuamos a existir
– naquilo que deixamos, nas ideias que as pessoas desse tempo, do futuro, têm
sobre aquilo que deixamos, e que podem não coincidir com as nossas. Mas sobre
isso não podemos nada, já não estamos cá. De qualquer forma, o olvido está
garantido, mesmo que não seja total. Uma das coisas que me dá uma satisfação
íntima… O meu avô morreu em 1948, a minha avó viveu ainda uns bons anos mais.
Aí, o processo de esquecimento começava exactamente no momento em que cada um
deles morreu. Dá-me uma satisfação que talvez nem saiba exprimir o facto de
ter-lhes dado uma vida.
Ao
recordá-los, ao nomeá-los.
Eu não
deixei que morressem. O nome deles nunca mais seria citado, nunca mais se
falaria nisso. A família está reduzida a quase nada: estou eu, a minha filha,
um vago primo que talvez ainda os recorde. Estavam condenados a desaparecer já.
Escrevi sobre eles. E em qualquer parte do mundo, alguém que se interesse por
aquilo que faço, já sabe que tem que aguentar com os meus avós.
Citou o seu
avô no discurso que fez na Academia Sueca e apontou-o como o homem mais sábio
que conheceu.
Foi o
princípio da minha conferência. E aí deixo o nome deles: Jerónimo Melrinho e
Josefa Caixinha. Falar deles nestes termos pode levar a uma certa idealização.
E sim, servindo-me deles como personagens literários, idealizei-os. Mas não
imaginem que eram extraordinários: eram pessoas comuns.
Eram
analfabetos. Porque é que ele era para si o homem mais sábio que conheceu?
Porque eu
era garoto. Era um homem alto, seco, delgado, de poucas palavras. Olhava para
ele, não como se fosse o super-homem, ou um anjo caído do céu, porque era um
homem, um camponês, não conhecia uma letra; contudo, como não tinha outros
mestres, além dos da escola primária, aquele, sem que alguma vez lhe tivesse
chamado isso, foi um mestre de vida. O próprio não sabia que era mestre, eu
próprio não sabia que era seu discípulo; simplesmente vivíamos juntos na mesma
casa. É possível que haja aqui muita elaboração mental. Mesmo que assim seja,
no centro da questão está…
O amor.
Também. Eles
não eram muito carinhosos. Não tinham tempo nem tinham sido educados para a
expressão do afecto. Já muito tinham em que pensar – tendo comido ao almoço, se
tinham comida ao jantar. Chamemos-lhe o momento mágico da infância para
resolver esta questão – que não fica nada resolvida, claro.
Um pouco
como o narrador-Saramago que resolve no livro uma coisa por elipse, com um
plof!
Imagine se
eu tivesse que resolver o processo… assim não: plof, e já está!
Falei de
imaginação, lucidez, ironia, compaixão, que comummente se dizem ser os pilares
da sua narrativa. Quando recuperou da doença, temeu ter perdido alguma destas
faculdades?
Não. No que
tem que ver com ironia e humor, nos diálogos que mantinha com os médicos usava
uma ironia por vezes agressiva. A Pilar olhava para mim com os olhos
esbugalhados; não era a dizer como é que eu me atrevia – estávamos a falar de
igual para igual; mas afinal de contas estava muito vivo na minha cabeça. O
corpo, estava um desastre, os pulmões encharcados, a perder peso a cada hora
que passava, até aos 51 quilos com que saí do hospital. A prova de que não devo
ter perdido nada do que era meu antes está no próprio livro.
Mas isso só
percebeu na escrita do livro? Quando partiu para ele, tinha uma insegurança de
algum tipo?
O livro foi
escrito em duas fases. A primeira desde Fevereiro do ano passado até ao Verão,
em que escrevi umas 40 páginas. Depois o meu estado agravou-se e o estado em
que me encontrava tirou-me o apetite de escrever. E nisto passaram-se meses. No
fim de Outubro, fui quatro dias a Buenos Aires – um autêntico disparate.
Praticamente não comi. A certa altura meteu-se-me na cabeça que queria maçãs
assadas. Mas é impossível encontrar na Argentina maçãs para assar e alguém que
as saiba assar. Vim de lá muito mal e fui para uma clínica em Madrid, onde me
fizeram uns quantos exames. Não acertaram com o diagnóstico. Fomos para
Lanzarote. Aí entro na rampa e começo a deslizar para o fundo. Não tive uma
dor, não posso dizer que sofri, dá mesmo a impressão que não estava lá. O meu
estado era de tal ordem que no hospital tiveram dúvidas em aceitar-me. Porque
não queriam que morresse no hospital deles! [riso] Se eu queria morrer, que
fosse morrer noutro sítio! Aí a Pilar armou-se em Joana D’Arc e convenceu-os de
que não podiam fazer isso, e revelaram-se pessoas e médicos extraordinários.
Esteve três
meses no hospital. Quando voltou a casa, de quanto tempo precisou até voltar a
escrever?
Eu era uma
sombra. As minhas pernas eram incapazes de suster-me, agora imagine andar…
Vinte e quatro horas depois já estava sentado à mesa a trabalhar.
Porque é que
escrever foi indispensável?
Aquele
trabalho tinha sido interrompido. Durante o tempo em que estive doente cheguei
a dizer à Pilar: “Não sei se vou conseguir acabar o livro”. A Pilar, falando
com os médicos, chegou a dizer-lhes: “Garantam-lhe a vida por mais três meses
para que ele possa terminar o livro”. Há que dizer que três meses não
bastariam.
A Pilar sabe
pedir… Sabe falar com bons modos…
Sabe, sabe.
A Pilar, se quer alguma coisa, é irresistível! [riso] Essa dedicatória que pus,
“a Pilar que me agarrou pela gola do casaco e não me deixou cair ao poço” [na
verdade, o que está escrito no livro é: “A Pilar, que não deixou que eu
morresse”], figuradamente é isso.
Curiosamente,
a palavra pilar aparece no livro uma única vez, para dizer “pilar da fé”. Um
pilar é algo que nos sustém. É o pilar da sua vida?
Foi, tem
sido, e espero que continue a ser o meu pilar. Além de ser intimamente a minha
Pilar, é também o meu pilar.
Voltemos à
necessidade de 24 horas depois estar a trabalhar. Era uma forma de manter-se
vivo?
Vivo estava
eu. Não era o corpo que queria escrever, era a cabeça. Essa ideia – não sei se
vou conseguir acabar o livro – continuava cá dentro. A primeira coisa que fiz
foi rever tudo o que estava escrito. E corrigir. Se me pergunta: tinha cabeça
para correcções? Tinha cabeça para o que fosse. Quando cheguei ao fim dessas
correcções, engatei a história, e terminei o livro no dia 12 de Agosto.
É um livro
muito luminoso. É surpreendente, sabendo de onde vem…
Embora a mim
não me surpreenda. Tenho uma capacidade de distanciamento muito, muito grande.
E neste caso, um distanciamento em relação ao doente que tinha sido, ao convalescente
que continuava a ser. Não reflecti: posso ou não posso escrever. Já se veria se
podia. Abri o computador, procurei o que estava há meses parado, numa certa
palavra, e recomecei sem dramatismos. Detesto dramatismos. Detesto aquilo que
os escritores cultivam muito: a relação dramática com a escrita.
Porque é que
detesta esse dramatismo?
Porque
acho que é falso.
Fala como se
o que faz fosse simplesmente um ofício.
Escrever é
um trabalho. Da mesma maneira que um médico, o que faz, é um trabalho. Essas
histórias em volta da página branca, o horror da página branca…
No seu
passado de editor ou jornalista estava em contacto directo com as palavras; mas
era para si um ofício diferente.
Não é a
mesma coisa estar no Diário de Lisboa, e escrever o editorial, ou no Diário de
Notícias, e escrever os meus apontamentos; mas não difere muito. Num caso e
noutro estou a usar as palavras, e as palavras de um romance são as mesmas, vêm
do mesmo depósito de palavras. Quando eu era um escritor que ninguém conhecia
já pensava: isto é um trabalho. Eu poderia ter as melhores ideias para livros,
as inspirações mais fulgurantes, mas tenho que as pôr no papel. Pode acontecer,
e acontece, que aquilo que eu julgava fulgurante afinal não o é
tanto.
Isso é
trabalhar a forma.
Quem
trabalha a forma trabalha o conteúdo, quem trabalha o conteúdo trabalha a
forma. Comparo o trabalho ao computador com o trabalho do oleiro. O oleiro
agarra num bocado de barro, põe-no no torno, o torno gira e ele começa a
trabalhar o barro até chegar à forma que quer. Há qualquer coisa de artesanal
com o trabalho no computador.
Não teve
dificuldade em retomar o fio, em engatar, como disse?
Nenhuma. Não
tem virtude nenhuma. É simplesmente uma maneira de ser. Você está a ver a
excelente ocasião que perdi para fazer do reatamento do meu trabalho um drama,
uma angústia, uma ânsia, e agora como é que vai ser?, vou ser capaz?
Nunca foi um
angustiado, pois não?
Nunca, nunca,
nunca, nunca. E ainda bem. Tive os meus momentos de abatimento, mas entrar em
depressão, nunca entrei.
O que é que
o segurou? O que é que fez com que nunca caísse em depressão?
Já não o
pensava há muitíssimos anos, e é simplesmente uma frase, mas é como se houvesse
dentro de mim uma parte intocada. Ali não entra nada. E que se traduz numa
certa serenidade, que se acentuou com a doença. Se alguma coisa pude aproveitar
dela foi este sentimento de extrema serenidade. Passei pelos momentos maus e
bons que todas as vidas têm, mas nunca perdi esta…, não quero chamar-lhe
segurança de mim mesmo... É um pouco como o olho do furacão: em redor é morte e
destruição, mas ali o vento não sopra.
Essa noção,
de ter essa parte intocada, tem-na desde quando?
Desde que é
possível ter consciência de uma coisa como esta. Pode ter sido aos 30 anos –
ponhamos assim. Mas quando tive consciência, percebi que já antes era assim.
Que
auto-estima tinha esse homem que está para trás? O homem que foi na primeira
parte da sua vida. Isso que descreve, parece ser uma coisa por sua conta,
autónoma.
De certo
modo. Eu tinha 18 ou 19 anos e tinha um grupo de amigos – como éramos cinco,
chamávamo-nos Pentágono! E um dia conversando sobre umas quantas coisas sérias
– o que é que era a vida? – disse esta frase que recordo tal qual e que me
ficou para toda a vida: “Aquilo que tiver que ser meu às mãos me há-de vir
ter”. Na boca de um rapaz, nos anos 40, uma frase como esta parece reflectir um
fatalismo radical. Fala-me de auto-estima: creio que sempre a tive e que esta
frase pode ser interpretada nesse sentido. Como nunca fiz projecto de carreira,
como nunca fui uma pessoa ambiciosa, como na minha vida não houve cálculo,
realmente não fiz nada para que as coisas acontecessem. A não ser o trabalho
que tinha de fazer a cada momento.
Fez todos os
trabalhos com o mesmo empenho?
Fazia o
melhor que sabia e podia, quer fosse na oficina de serralharia onde comecei,
quer nas actividades que vieram depois. Vou contar-lhe uma coisa: o Nataniel
Costa era o director editorial da Estúdios Cor. Encontrávamo-nos no Café
Chiado. Eu não tinha quaisquer credenciais. Tinha os meus amigos, os tais do
Pentágono – portanto, ficava numa mesa à parte. E ouvia os outros, os
Abelairas, essa gente, ali reunida. Passado tempo, o Nataniel entra na carreira
diplomática e falou comigo. Seguimos juntos pelo passeio, em direcção à
Brasileira. “Queria perguntar-lhe se está disposto a ocupar o meu lugar na
editora enquanto eu estiver ausente, e depois logo se verá”. Porque me dizia
aquilo a mim? “Não faltam pessoas a quem poderia ter falado; mas não tenho a
certeza de que não aproveitassem essa circunstância para me apunhalarem pelas
costas”. Isto é dos momentos mais importantes da minha vida. Alguém que não
tinha sido pago para isso nem tinha razões afectivas para o fazer, disse o que
disse.
Além de
confiarem na sua lealdade, foi o início de um período, em que foi editor.
É como se
pudesse dizer-me: tenho razão em ter feito a minha vida como a fiz até hoje.
Durante anos escrevíamo-nos, trocávamos ideias e sempre nos entendemos sem o
mínimo atrito, nunca houve roçadura de pele.
A
imaginação, a ironia, a compaixão estão para o autor como a moral, a coerência,
o comunismo estão para o homem? Contaminam-se, e são do mesmo?
São, são.
Comunismo é um estado de espírito. Um dia participei no programa do Bernard
Pivot que veio com essa: “Como é que você ainda se considera comunista?” Disse
espontaneamente: “Acontece que sou uma espécie de comunista hormonal. Da mesma
maneira que a barba me cresce, há uma hormona que fez de mim isto, e não posso
deixar de o ser. Pode dizer-me: depois disto que aconteceu, e isto e isto; de
acordo, tudo isso aconteceu, e parece-me mal que tenha acontecido, e condeno
quem o fez. Mas isso não me tira o direito, e o dever, de ser aquilo que sou”.
Ele riu-se muito. É isso. Mais recentemente converti isto na declaração: o
comunismo é um estado de espírito. Dois camaradas atacaram isto, em nome do
materialismo dialéctico. Não entenderam.
Voltando ao
livro, há momentos de provação. Como quando a caravana enfrenta o desfiladeiro
ou os lobos. O que há numa situação e noutra é o medo. Não sei da sua relação
com o medo.
Nunca me
encontrei em situações em que o medo se desencadeasse fora do meu domínio.
Pondo esta salvaguarda, não me considero uma pessoa medrosa. Também não sou um
exemplo de valentia – nunca fui posto à prova. Vamos à experiência mais
recente, a doença. O medo da morte, que é um medo tão comum, nunca tive. A
probabilidade de morrer era alta. Talvez não tenha tido medo por causa da
costela fatalista que tenho – o que tiver de ser, será.
É evidente
que o elefante não pode sucumbir aos lobos, ou cair no desfiladeiro – ou seja,
nas partes menos boas.
Se
transportar isso para a vida, é uma forma de optimismo. E que liga com aquela
frase dos 19 anos.
Escreve para
ser amado? Escrever é uma forma de ser amado?
Pode ser
entendido assim. O Gabriel García Márquez dizia que escrevia para que gostassem
dele. É possível. É mais exacto dizer que a gente escreve porque não quer
morrer. Ser amado pelo outro não está na nossa mão; podemos escrever para que
isso aconteça, e depois acontecerá ou não. Já que temos que morrer, que alguma
coisa fique. Não é imortalidade – isso seria um disparate; é um reconhecimento
por algum tempo mais.
ENSAIO SOBRE
A CEGUEIRA
Gosta do
filme?
Gosto muito.
Tinha gostado da primeira vez que o vi, mas de uma forma mitigada. Porque as
condições de projecção do cinema S. Jorge eram más. Não vi o filme em Cannes;
não estava em condições de fazer uma viagem dessas e andar por lá. Na
antestreia, vi uma nova versão, com uma nova montagem. O Fernando [Meirelles] e
eu tínhamos conversado, tinha-lhe dado a minha opinião. Na montagem que fez
restituiu ao filme algo que lhe tinha retirado – violência. O filme é acusado
de ser violento. A minha resposta é que não é mais violento do que as séries
que nos entram diariamente em casa para consumo das famílias.
O livro é
mais violento do que o filme.
Muito mais
violento. A Julianne Moore é um portento, como todos os outros. Fiquei
surpreendido pela escolha do Gael para chefe da camarata dos malvados; está um
pouco histérico, mas faz um bom papel. A montagem é perfeita. A imagem é
eloquente. Uma coerência dramática perfeitamente conseguida.
Tem uma cena
preferida?
Há uma cena
que me impressiona muitíssimo: quando as mulheres vão para a camarata dos
outros cegos. Passam em fila indiana, uma atrás das outras, cabisbaixas, em
direcção ao martírio. Pareceu-me que, no fundo, a história da mulher, no mundo,
na História, estava ali.
Lembra-se
quando começou a sua relação com o cinema?
Devia ter
seis anos. Morávamos na Mouraria. Perto havia o Salão Lisboa, a que chamávamos
O Piolho. Foi aí que comecei a ir ao cinema, com um rapaz mais velho do que eu
que vivia na mesma casa, o Félix. (Era no tempo em que se alugavam partes de
casa). Vi as coisas mais disparatadas, filmes de terror, um filme em que
aparecia um leproso com um capuz… O outro cinema onde ia, mais tarde, era o
Animatógrafo. Giríssimo, pequeno, com uma espécie de grade que separava uma
plateia da outra. Foi aí que vi uma parelha de cómicos suecos, que eram
conhecidos à francesa por Pat & Patachon. Garanto-lhe que se tenho
conhecimento que aparecem aí os filmes do Pat & Patachon, vou a
correr!
Fonte: Público (2008)