José
Saramago tem 84 anos e volta “ao fundo movediço, composto de restos, de
detritos de tudo e de todos” onde fica a infância. Volta à Azinhaga, aos pais,
“migrantes empurrados pela necessidade”, aos quartos com serventia de cozinha
nas casas partilhadas de Lisboa, ao primo José Dinis, à Domitília, aos tios, às
baratas que passeavam pelo sono, às camas entre a palha dos animais, à
violência doméstica, aos rapazes que lhe enfiaram um arame na uretra. Recupera
o mais primitivo dos refrescos, de água, vinagre e açúcar, (que já tinha
recuperado no “Evangelho” para matar a sede a Cristo), traz um sapateiro que
lhe perguntou: «Você acredita na pluralidade dos mundos?».
José
Saramago fala do começo do mundo, do primeiro dos seus mundos. Eduardo Lourenço
resolve numa frase a imensa improbabilidade de o mesmo rapaz, que se descreve
nestas memórias, ser o Nobel da Literatura português: «A tua vida é um
milagre».
Quando a
distinção da academia sueca lhe foi atribuída, José, Zé, Zezito, falou do avô
Jerónimo: “O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler,
nem escrever”. É por ele, citado no livro, que começo a entrevista. Nela se
fala de morte, de uma fúria de viver, da influência de que inequivocamente
goza, do sentimento de ser amado como homem e autor, e de esse constituir o
maior dos tesouros.
(Aviso aos
amantes da polémica: a comida requentada é quase sempre estéril, desagradável,
empobrecedora. Por isso não são trazidas questões antigas, secas, respondidas.
Como Cuba e Fidel. A acusação de que perseguia não-comunistas quando era
director do Diário de Lisboa. Sousa Lara e o veto do “Evangelho segundo Jesus
Cristo. A razão porque foi viver para Lanzarote. Se quiserem abandonar aqui a
leitura, lamento. O que se segue é muito mais fértil do que qualquer uma dessas
linhas). Eis um homem a quem a vida deu muito e que se deu a ela
completamente.
Começo por
uma longa frase, que parece uma despedida: “Ainda não sabe que poucos dias
antes do seu último dia terá o pressentimento de que o fim chegou, e irá de
árvore em árvore do seu quintal, abraçar os troncos, despedir-se deles, das
sombras amigas, dos frutos que não voltará a comer. (...) Que palavra dirá
então?”. Este livro deve ser entendido como uma antecâmara de qualquer coisa?
Não diria
isso. O tempo que tenho para viver já não é muito. Se tivesse que desejar uma
maneira de terminar o meu trabalho, podia até considerar esta excelente. O fim
volta ao princípio, o ciclo fecha-se. Há uma vida, há um trabalho, depois há um
regresso às origens. Dentro de um ano ou dois já saberemos se é a antecâmara do
silêncio ou se é simplesmente um livro de passagem para outro livro.
A ideia da
morte perpassa estas “Pequenas Memórias”. Há uma parte em que diz que quando
pensou em escrevê-las, achou que tinha de descrever a morte do seu irmão...
Não é isso,
não comecem a complicar as coisas. Senão, depois, acabam por mas complicar a
mim e tenho de começar a pensar que os meus motivos não tinham nada que ver e
que são os vossos que justificam o livro. Está claríssimo que, se ia escrever
esse livro, em que recordo a minha infância, não podia ignorar a morte do meu
irmão, embora não tenha praticamente memória nenhuma dele. Falo de uma falsa
memória, quando imagino que estamos numa cave, há uma janela, e há uma cómoda
com uma gaveta aberta e outra aberta, como se eu quisesse subir pelas gavetas
até chegar lá acima.
Quando o seu
irmão morreu, tinha três anos e meio.
Fui
testemunha directa do que aconteceu, mas testemunha não-consciente do que
aconteceu. Do que falo aí é do que sei pelo que o meu pai contava, a minha mãe
contava. Algumas suposições minhas, quanto ao modo de ser da minha mãe – um
pouco seco –, pode ter
sido motivado pela morte do primeiro filho, e depois não querer demonstrar
grandes sentimentos em relação ao segundo, não fosse dar-se o caso de eu
também... Tudo isto é ao mesmo tempo muito simples e muito complicado, como
todas as coisas. Mas gostava de saber: antecâmara de quê, na sua opinião?
Acho
legítimo que uma pessoa da sua idade se pergunte quanto tempo mais vai viver,
em que condições, e sinta um desejo de acertar coisas, dizer coisas.
Não tinha
contas a ajustar com nada. Esse livro, de existência na minha cabeça, tem 20
anos, pelo menos. Foi um livro que comecei, depois interrompi, depois voltei a
ele, depois interrompi. Porque sempre aparecia, felizmente para mim, uma ideia
para um novo romance, e deixava as memórias. Até que este ano, não tinha outra
ideia, e decidi acabar isto. Que eu tenho 84 anos e não posso viver mais 84,
está claro. Não penso na morte. Ou melhor, todos pensamos na morte. A morte
para mim não é tanto isso de morrer; é mais simples, e ao mesmo tempo mais
duro. A pessoa estava e já não está – isso é que é o pior de tudo.
Significa já
não poder experimentar o que quer que seja...
Não, não é
isso. Daqui a duas ou três semanas, quando voltar a casa, posso chegar à
varanda, olhar para o jardim e pensar: “Agora estou aqui, vejo os meus cães, a
minha mulher e depois já cá não estou”. Mas é assim para todos, animais,
vegetais. Tudo o que nasce morre.
É um livro
muito sensorial. A descrição da infância está cheia de temperaturas, bichos,
cheiros. Mas para um homem de palavras, volto à questão inicial: «Que palavra
dirá então?». Há a muito célebre frase de Goethe, no leito da morte, fruto da
invenção ou não, mas que chegou até nós: “Mais luz, mais luz”.
As últimas frases
são uma coisa horrorosa. Não devia ser permitido falar nesse momento. Não quer
dizer que não haja frases espontâneas... Mas temo muito que algumas delas sejam
pensadas, com tempo.
A posar para
a posteridade.
A posar para
posteridade.
“Deixa-te
levar pela criança que foste” serve de epígrafe ao livro. Sendo um bom ponto de
partida para o ler, não sei se seria um bom ponto de partida para ler a sua
vida. Que palavra, que aforismo, que epitáfio seria o certo para o evocar?
Está a
pedir-me demasiadas coisas para as quais não vinha nada preparado, nem me vou
preparar agora, evidentemente.
Mas podemos ir falando...
Você falou
de epitáfio, e há um interessante: “Aqui jaz Fulano de Tal, indignado”.
Indignado, porque é uma partida que nos fazem, estávamos cá tão bem, supondo
que estávamos bem, e de repente levam-nos a outro lado, onde não há nada. Não
me vai perguntar se acredito no Além?
Não, imagino
que não acredite.
Faz muito
bem em imaginar.
Mas há uma
figura do Além que aparece no livro, uma “costureira ímpia condenada a coser
roupa à máquina por toda a eternidade dentro das paredes das casas”.
Nessa época
era tão natural, estava-se numa casa e uma pessoa vinha dizer: “Olha, lá está a
costureira”... Ouvi-a em Lisboa e na aldeia. Punha-se o ouvido e era aquele
ruído característico de quando se quer travar a máquina e se leva a mão à roda.
Nunca ninguém achou que precisava de ser explicado. Que não era uma ilusão dos
sentidos, alguém que disse e outro acreditou, não era. Curiosamente, a
professora Maria Alzira Seixo, no artigo que escreveu no JL sobre este livro,
diz que também ouviu a costureira.
Quando
estava a ler o episódio da costureira, perguntei-me como é que as parábolas (de
que se fazem os seus livros) surgem na sua vida. Como é que um racionalista, um
marxista, encaixa esta dimensão mística? Até que ponto essa infância de
necessidade, em que aconteciam coisas inexplicáveis, não lhe deixou uma marca
de fantasmagoria que vai reaparecendo em toda a sua vida?
É difícil
confirmar ou dizer que não. Claro que tudo o que nos acontece nos constrói ou
nos destrói, e se as coisas andam cá dentro, não são muitas vezes conscientes.
Quando chega a hora, podem manifestar-se de maneiras que não são directas. Para
seguir o percurso seria necessário um trabalho muito atento de auto-reflexão ou
de entrega às mãos de um psicanalista – coisa que não fiz nem farei nunca. Mas
não creio. Repare, uma vida de necessidade é uma vida de necessidade: o que
está por cima de tudo é a necessidade.
A marca da
aldeia é poderosa.
As
impressões mais fortes, aquelas que terão contribuído para fazer de mim a
pessoa que sou, são da aldeia, e não da cidade. Mas não posso identificar que
sou assim por causa daquilo que aconteceu, ou sou assado porque não aconteceu –
como é o caso do cavalo do meu tio que nunca montei. Quando digo que fiquei com
um trauma desde então, não é um trauma, mas a prova de que alguma coisa
significa é que não me esqueci. E quando me lembro, faz-me raiva, porque eu
também merecia andar montado naquela sela. Mas nada disto é muito importante.
Mas afinal,
o que é que importa mesmo na vida de uma pessoa?
Ao contrário
de muitas outras pessoas, sempre tive consciência da importância que a infância
tinha tido para mim. Não me esqueci – está aí demonstrado –, nem quis
esquecê-la. E há coisas que estão aí “ipsis verbis”, frases que ficaram durante
70 anos ou mais na minha memória. Até mesmo factos, pessoas e nomes que julgava
esquecidos, quando comecei a escavar, de repente, subiram à superfície. O
quarto onde se dormia, a varanda que dava para a Rua Heróis de Quionga, na
Mouraria, a prostituta que me disse assim, eu tinha doze anos: “O menino quer
vir para o quarto?”.
O que
parece, a partir do livro, é que não foi especialmente amado, ou nunca se
sentiu especialmente amado.
Posso ter
dado essa ideia, mas não é assim. Em primeiro lugar, há que pôr as coisas num
contexto. Especialmente amado..., realmente, talvez não. E por que é que tinha
que ser especialmente amado? Tratava-se de uma classe que não era alheia aos
sentimentos, mas que se tinha habituado a não expressar os sentimentos. Não
caía bem, sobretudo tratando-se de homens.
Seria
piegas?
Sim. Essa
coisa que se consubstanciou na frase célebre “os homens não choram”. E portanto
havia uma certa..., não era dureza, as pessoas não se davam mal, mas não
andavam no dia-a-dia a derramar-se em sentimentos e em sentimentalismos. A vida
fazia-se de palavras simples. A ninguém lhe ocorria dizer “gosto de ti”, “o teu
sorriso é como um colar de pérolas”, tipo “Cântico dos Cânticos”. Era uma
maneira de viver austera. Fui amado como qualquer outro dos componentes da
família. Se estava doente, a minha mãe preocupava-se, o meu pai preocupava-se.
Lembrei-me
daquela imagem que se tornou muito célebre, do reencontro com a sua mulher,
depois de se saber que tinha ganho o Nobel. Foi um abraço altamente emotivo.
Quando li a austeridade da sua infância, pensei nos passos que teve que dar
para conseguir exprimir afecto daquela maneira.
Sim, passos no sentido de adquirir o material expressivo para comunicar os
sentimentos. Para isso, precisava de tempo, precisava de viver. Mas sempre fui
uma criança muito sensível. E como a vida não me endureceu, não me tornou mais
egoísta do que aquilo que cada um de nós naturalmente é... Tenho uma péssima
fama, fama de sisudo, de carrancudo, de cara fechada. E depois passa-se a
qualificativos de outro género: “Arrogante”, “orgulhoso”, “vaidoso”. Não me
reconheço em nada disso, mas cada um olha para mim como quer. Claro que não me
desmancho em sorrisos para toda a gente, não sou assim. Uma gargalhada para
mim, é muito complicada. Pode sair alguma, no dia em que o rei faz anos...
O que é que
lhe dá prazer? O que é que o faz sorrir? O que é que o faz ter vontade de
expressar afecto?
Em primeiro
lugar, senti-lo. E se o sentes, e não tens pudores do tipo “o homem não chora”,
isso acontece naturalmente. Tenho chorado, como qualquer pessoa.
Chorou a escrever o livro?
Não, neste
livro não.Já me aconteceu chorar ao terminar um livro. A descarga da tensão, o
sentir que está feito, mais do que uma vez, já me provocou lágrimas.
Em
circunstâncias normais, o que é que o comove?
Se for ali
na rua com o seu marido, noivo, irmão, a sua mãe, e se você, ou um deles, lhe
puser a mão no ombro, esse gesto tão simples pode comover-me. Não estou a falar
do abraço erótico. O abraço, os braços que rodeiam o corpo do outro, essa
proximidade entre dois seres, comove-me. Comovem-me as grandes tragédias,
silenciosas ou não. Sou realmente uma pessoa sensível. A gente com a idade
torna-se mais frágil, está tudo à flor da pele, ao contrário daquilo que se
crê, que com a idade se endurece. Pelo menos, não é o meu caso.
O que é que
perdeu? Não se fala taxativamente de inocência neste livro.
É um assunto
a que sempre estamos a voltar: a inocência. A criança não sabe se é inocente ou
não. É o adulto que fabrica esse estado imaginário da inocência. Eu podia dizer
assim: a perda da inocência está na última página [do livro]. Na última página
está a história de um homem e de uma mulher que vi; a mulher disse: “ai, ele
conhece-me e vai avisar o meu marido”.
Essa
história, e o livro, termina com: “Nunca mais tornei a ver o lagarto verde”.
Como se o
lagarto verde fosse o símbolo da inocência. Gosto muito de lagartos [na verdade,
JS diz: “mi gusta mucho os lagartos”], acho que é um animal bonito. Tenho-os no
meu jardim.
Na sua
infância, tinha um pesadelo recorrente com um quarto em forma de triângulo...
Era
realmente angustiante. No canto havia uma coisa que ia crescendo, ocupando o
espaço, aproximando-se de mim... Havia também uma música, que nunca consegui
fixar. Aquilo nunca me asfixiou, nunca me fez nenhum mal, a não ser o medo.
Quando o medo chegava ao paroxismo, fazia-me acordar.
Ao longo do
livro, outros sentimentos são recorrentes: a humilhação e a vergonha. Kafka
dizia que a vergonha é o mais estigmatizante dos sentimentos.
Eu li o
Kafka.
Com certeza.
Gostava era que me dissesse se concorda com o Kafka e se o sentimento da
vergonha é nuclear em si.
Não sei se o
será. Tem-se vergonha por alguma que se fez e não se devia ter feito. Ou por
ter sido posto em causa, ridicularizado, por exemplo. Como os adultos nunca
entenderam nada sobre as crianças, é possível que não imaginem quantas vezes
terão humilhado os próprios filhos, sem se darem conta que estavam a
humilhá-los. Não creio que em mim um factor influente, até mesmo determinante,
tenha sido a vergonha. A humilhação, sim. Mas não era grave, eram situações
correntes às quais estava a reagir a sensibilidade de uma criança, que não
devia ter passado por aquela situação, mas que está a vivê-la. E isso deixa um
rasto.
No lado
oposto disto, há um momento de glória, quando chega a uma escola nova e dá um
único erro ortográfico no ditado: escreve “calsse” em vez de “classe”, e passa
para a carteira do melhor. “Foi aqui, agora que o penso, que a história da
minha vida começou”. Na página seguinte conta: “Quando o PEN Clube me atribuiu
o seu prémio pelo romance “Levantado do Chão”, contei esta história para
assegurar às pessoas que nenhum momento de glória presente ou futura poderia,
nem por sombras, comparar-se àquele”.
Tinha
publicado o “Levantado do Chão” em 1980, ainda tinham que passar 18 anos para
que me dessem o Prémio Nobel... Momento de glória, o que é que isso quer dizer?
O que quer
dizer, para si?
Satisfação.
Sentimento de que o trabalho foi reconhecido. Uma sensação de glória só pode
ser algo muito fugaz. O que constrói a glória é a visão dos outros. Já que os
outros acham que têm motivo para isso, a pessoa começa também a achar. Recordo
nitidamente esse episódio da aula. Tinha sete anos. Claro que saí satisfeito
quando ia em direcção ao meu lugar, mas um pouco aturdido. A professora:
estúpida. Se queria distinguir-me pelo meu feito, havia outras maneiras. Agora,
brutalmente, mandando sair de lá aquele que tinha ganho o seu lugar, não se
faz. Não creio que tenha pensado nisto. O Nobel é outra coisa.
O Nobel é
uma coisa que muda a vida?
Não mudou
muito. Imaginar que por causa do Nobel é que passei a andar num virote... A
minha vida antes já era essa, desde os anos 70, final dos anos 60. Claro que
nos anos 60 não viajava aos Estados Unidos, ou à Austrália, ou à Islândia, mas
participava na vida política, e isso levava-me a ter encontros e a falar às
pessoas.
No fundo, só
intensificou aquilo que já existia na sua vida?
Só
multiplicou aquilo que vinha sucedendo já. Mas multiplicou por muito, tenho que
dizer.
E
intimamente, mudou alguma coisa? A confiança que tem em si, na sua escrita, no
seu talento?
Não mudou
nada. Nem me pôs defeitos que não tivesse antes, nem introduziu qualidades que
não fossem as minhas. A pessoa que sou não mudou. E os meus amigos e todos os
que me conhecem podem confirmá-lo. Não tenho pose. Gosto muito quando vou na
rua e as pessoas me param: “É só para o cumprimentar, como vai?, gosto muito
daquilo que escreve”. São pequenas glórias praticamente quotidianas. Aqui ou em
Espanha.
Por que é
que isso é tão gratificante? Não sabe mais daquelas pessoas, não sabe por que é
que elas gostam de si, com que intuito se lhe dirigem...
É uma
relação de conveniência, digamos assim. A mim convém-me que comprem os livros
porque é disso que vivo, e às pessoas convém porque os apreciam. Não sei
porquê, estabeleceu-se uma outra relação: tenho a sorte de ser estimado com
escritor e como pessoa.
Como é que
sente isso?
Podia dar
como prova o tom com que me falam, como me fazem parar na rua. “O Homem
Duplicado” foi apresentado no Teatro Colón, em Buenos Aires, e estava cheio.
Tem quase quatro mil lugares e a fila das pessoas cá fora calcularam em cerca
de mil. E como eu digo, não bailo nem canto, só falo. Sei que as pessoas gostam
de mim. Nisso acredito. Gostam do que escrevo, mas mais importante é que gostam
da pessoa que eu sou. Se há algum motivo de glória que tenho, nem é o dia na
escola primária nem sequer é o Nobel: é o saber-me amado por muitíssimos
milhares de pessoas no mundo. Pode isto parecer uma presunção, que estou aqui a
inventar uma história bonita para os leitores do seu jornal, mas não. A
história bonita é, mas não é inventada.
Estava a pensar no “Balas sobre a Broadway”, do Woody Allen, no momento em que
um autor de sucesso pergunta à namorada: “Mas tu amas o homem ou amas o
autor?”. Para si as duas...
... estão
fundidas.
Muitos
autores há em que tal não acontece. Lê Céline da mesma maneira,
“esquecendo” que foi colaboracionista? Ou vê os filmes de Elia Kazan, que
denunciou comunistas em Hollywood? Ou ouve Karajan, que era nazi?
Há coisas
que não são completamente suportáveis, por muito extraordinária que seja a obra
ou a acção da pessoa. Há essa mazela, que nem é sentida da mesma maneira em
diversos momentos. “Aquele filho da mãe, que bem escreve, e imagina aquilo que
fez, aquilo que era...”. Normalmente, esses autores não os leio. Mas tenho de
confessar que ouvi muita música dirigida pelo Karajan; mas a música não é dele,
é do Bach, do Beethoven.
Céline não é
um autor que leia?
Nunca gostei
dele, nem sequer por essas razões. Tem pontos de exclamação e reticências a
mais. O Elia Kazan é um canalha. Um canalha pode produzir uma obra-prima.
«Esplendor
na Relva» é um filme que consegue ver sem pensar que Kazan é um canalha?
Não sei como
é que o veria hoje. Às vezes, a beleza das imagens pode fazer-nos pensar, em
lugar de “aquele tipo era um canalha”, “que pena que aquele tipo tivesse tido
aquela fraqueza”.
Conseguirá
ler o Günter Grass sem se lembrar do episódio agora revelado?
Se vivemos
com as nossas próprias vergonhas, por que é que não vamos viver com as
vergonhas alheias? Tenho que pensar que o Grass entrou para as SS de cada vez
que leio um livro dele? Que ao longo do livro possa recordar isso, uma vez ou
outra... Não me pode levar a dizer: “Não te leio”. Aliás, o homem já disse o
que foi. Demorou muito tempo, mas disse, acabou-se. E agora é deixá-lo viver e
trabalhar.
Ainda não
tinha aparecido nesta entrevista esse seu lado, polemista e político.
Convictamente, assertivamente expressa-se sobre temas como o conflito
israelo-paslestiano, Cuba...
E tudo
aquilo que se passa em democracia...
[entra
Pilar, a mulher, que lhe estende um papel para assinar “sobre o aborto”]
Foi um anjo
que apareceu na sua vida.
Foi, mais do
que um anjo, uma mulher. Podia ser qualquer outra, dirá você. Pois, mas é esta.
A diferença está aí. De anjo tem muito pouco. É de carácter demasiado forte.
Mas
estávamos a falar da sua dimensão política.
As coisas
estão aí. Em primeiro lugar como pessoa e depois como escritor, não sou pessoa
para contentar-se em cultivar o seu jardim. Considero isso muito respeitável,
não estou a criticar ninguém pelo facto de dizer: “Não, a minha prioridade
absoluta é a minha obra”.
A sua, não
é?
Não. Pode
ser uma prioridade, mas não é a prioridade absoluta. Se amanhã deixar de
escrever, coisa que sempre pode acontecer e acontece muitas vezes, porque a
pessoa reconhece que já não tem nada para dizer que valha a pena, a obra deixou
de ser a prioridade. Não está preocupado que tem que escrever obras-primas até
ao último instante da sua vida, ainda por cima obras-primas, sempre... A minha
obra é prioritária sobre umas quantas coisas.
Nomeadamente?
Que lugar, afinal, ocupa a sua obra na sua vida?
Quero ter
tempo para escrevê-la, reivindico tempo para escrevê-la. Mas não é a única
prioridade, eu vivo neste mundo. E o que se passa, em primeiro lugar
interessa-me, em segundo lugar impressiona-me, em terceiro lugar indigna-me, e
tenho que dar voz a estes sentimentos. Passe-se a questão na América Hispânica,
em África, na China. Não é que ande a dar lições de moral a todo o mundo.
Limito-me a dizer aquilo que penso. Se tenho algum motivo de orgulho, e creio
que tenho direito a tê-lo, é poder dizer que a mim não me calam. Ninguém me
cala.
Ter
conquistado esse direito é expressão de ser um homem poderoso, um homem
influente.
Poderoso
não.
O poder
assume várias faces.
[Sou um
homem] com alguma influência.
Que noção é que tem da sua influência, da importância daquilo que diz?
Agora,
nestes felizes tempos da Internet, qualquer coisa que diga dá a volta ao mundo
em três segundos, e o alerta do Google, que eu não tenho, mas que tem a minha
mulher, sai-me sempre com uma enfiada de repercussões, aqui e ali, de
declarações minhas. No outro dia estava na Itália e disse, com grande escândalo
do Vaticano, que achou que era uma provocação infame, mais uma da minha parte,
que o mundo seria mais pacífico se fôssemos todos ateus.
Acha que o
que está na génese dos conflitos é mais a religião e menos a economia?
Eu não disse
isso.
É outra
questão, bem sei.
Aqui há uns
anos escrevi um artigo que deu um certo barulho, chamava-se “O factor Deus”.
Tinha que ver com os conflitos religiosos. Dizia mais ou menos isto: Deus não
tem nada que ver com isto, provavelmente nem sequer existe, o que existe é o
factor Deus e esse tem vindo a ser usado desde sempre como uma arma. O teólogo
Hans Kung que agora está zangado com o papa, dizia: “As religiões nunca
serviram para aproximar os seres humanos uns dos outros”, pelo contrário. No
“Ensaio sobre a Cegueira”, lembra-se do momento em que a mulher do médico entra
na igreja e os santos estão todos com os olhos tapados? Porquê aquilo? E a
minha resposta é muito simples: Deus não merece ver o sofrimento humano.
Ou Deus
devia ser obrigado a ver o sofrimento humano?
A Deus
ninguém pode obrigá-lo.
Mas quando
diz que não merece, é como se fosse um prémio. E o sofrimento não é uma coisa
digna de ser vista.
Não. Mas
exactamente, nem sequer isso merece.
O que quer
dizer é que, a existir, Deus é iníquo por consentir...
Claro.
Se olho para
este livro, se olho para este rapaz que foi, dou-me conta do quão improvável é
o seu destino. Dinis Machado escreve em «O Que Diz Molero», “as flores nascem
do estrume”. Como se as mais radiosas fossem as que vêm da pobreza. Consegue
perceber o que é que fez da sua vida uma vida diferente?
Não sei, não
consigo, não é fácil. Há um factor que levo em conta, o factor sorte. Não é o
que seja o que sou hoje por uma questão de sorte. Mas também contam muito os
momentos em que as coisas sucedem. Às vezes se sucedessem um pouco antes ou um
pouco depois, já o efeito não seria o mesmo. Também não é fácil destrinçar numa
vida que momentos são esses. Não há dúvida nenhuma de que não estava no caminho
de chegar onde estou, a esta cadeira, na Editorial Caminho, em Lisboa,
conversando consigo.
O que é que
aconteceu pelo caminho?
Os meus pais
sacrificaram-se muito e deram-me estudos para ir para a universidade? Não, tive
estudos que estavam ao meu alcance e ao alcance da bolsa da família: estudei
para ser serralheiro mecânico. Fui serralheiro mecânico. Depois fui várias
coisas ao longo da vida. Li muito. Livros meus só os tive quando tinha 19 anos,
quando pude comprar, com dinheiro que um amigo me emprestou. Em 47 escrevi um
romance, escrevi outro logo a seguir que ficou inédito, que se chama
“Clarabóia”, e que ficará inédito enquanto eu viva.
Não gosta
dele, é por isso?
Podia
chamar-se oportunismo comercial, publicar agora esse livro escrito há 50 anos
ou 60 anos. Aceitei que a “Terra do Pecado” fosse publicado porque a Pilar e o
Zeferino [Coelho, editor] empenharam-se muito nisso. Houve dois momentos
importantes na minha vida que decidiram tudo. Um deles, não muito consciente,
foi o facto de ter deixado de escrever depois de ter escrito esses livros.
Durante 20 anos, quase não escrevi. Só voltei a publicar em 1966.
Era um homem
maduro, tinha 44 anos nessa altura.
O segundo
momento foi em 1975, quando, depois do 25 de Novembro, fiquei sem trabalho e
sem esperança de o conseguir. “E agora, o que é que eu faço? Tenho aí alguns
livros, mas não tenho uma obra, é agora ou nunca”. Durante cinco ou seis anos,
talvez sete, vivi de traduções, ao mesmo tempo que ia escrevendo o “Manual de
Pintura e Caligrafia”, e o “Objecto Quase”. A sorte foi que o Círculo de
Leitores me tivesse convidado para escrever “Uma Viagem a Portugal”, em
1979-80. Foi bem pago, deu-me uma estabilidade económica que me permitiu
afrontar durante um ano ou dois o trabalho [da escrita], sem estar a pensar que
tinha que ganhar dinheiro – ele já estava ganho.
Não imagina
as vezes que folheei esse livro quando era pequena.
Ah, sim? Que
bom.
Nem eu ia
imaginar, que um dia estaríamos aqui.
O Eduardo
Lourenço tem uma explicação mais simples para tudo isto: “A tua vida é um
milagre”. E ficámos por ali, não havia mais nada a dizer.
O que é que
mais do que tudo justifica a sua vida? Como é que quer ser recordado?
Se calhar
vou pedir o impossível: eu considero-me boa pessoa. Então, que nem a pessoa que
sou apague o escritor que também sou, e que nem o escritor que sou apague a
pessoa que sou. Se calhar é muita sorte alguma destas ficar. Que fiquem as
duas, é capaz de ser impossível.
Fonte: Jornal de Negócios
(outubro de 2008)