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O escritor em construção


por Carlos Reis


1. Um dos conceitos mais fecundos e complexos da fenomenologia da literatura é o de vida da obra. Implica um tal conceito que as obras literárias possuem uma existência própria, para além da vontade e do controlo dos escritores; que essa existência depende, em grande parte, das leituras (das concretizações) a que ela é submetida; que a notoriedade (e também a posteridade) dos escritores é fortemente condicionada pela vida da obra; e também que a relação dos escritores com as suas obras é muito sensível aos modos como elas vão vivendo a sua vida, com as venturas e com as desventuras que as atingem. De forma ainda mais radical: uma vez publicada, uma obra literária ganha, em relação ao seu criador, uma autonomia e uma liberdade de movimentos tais que bem pode dizer-se que, de um ponto de vista cultural, ela deixa de lhe pertencer, para passar a ser património da comunidade em que se integra. Uma comunidade feita de leitores e de instituições literárias e paraliterárias.

Em 1947 publicou José Saramago o seu primeiro romance, destinado a ter uma vida curta e praticamente sem memória. No esquecimento deixou-o, de facto, o escritor por muitos anos, recusando-se a fazer o que outros, com mais ou menos dificuldade e drama íntimo, fizeram: voltar ao texto, refazê-lo, republicá-lo e relançálo no mundo, para viver uma vida nova. Muitos assim procederam: Eça, antes de mais, com o seu Crime do Padre Amaro, escrito em três versões no lapso de menos de dez anos; Carlos de Oliveira com quase todos os seus romances (mas não com todos eles, porque uma promessa de refundição de Alcateia não chegou a ser cumprida). Outros, pelo contrário, entendem que a vida da obra está determinada, para todo o sempre, por um texto que não tem que ser alterado. Exemplo que me ocorre: Vergílio Ferreira e o seu Vagão J, a este respeito objecto de longa (e hábil) reflexão, num prólogo que antecede a edição de 1976.

Depois de Terra do Pecado, só passados trinta anos Saramago volta a publicar um romance: o Manual de Pintura e Caligrafia. Não são certamente frequentes (não me recordo agora de nenhum outro) os casos de escritores que abrem um tão amplo lapso temporal entre título e título (isto se descontarmos um outro texto de Saramago, A Clarabóia, texto que, não tendo sido publicado, não chegou a ser obra e, por isso, não veio a ter vida autónoma).

Apetece perguntar, se é legítimo fazê-lo (e por que não o seria?): o que andou o romancista a fazer, antes de o ser? Muitas e variadas coisas, reveladas pela sua biografia: trabalhou em editoras, escreveu em jornais, fez traduções, compôs poesia. Só depois de trinta anos irrompeu (o termo não é excessivo) para a escrita do romance, com um fulgor que permanece vivo. E contudo, o romance de Saramago, sobretudo de Levantado do Chão em diante (que é de 1980), pouco ou nada tem que ver com essa Terra do Pecado.

2. O que se publicava em Portugal, por 1947? E que lugar haveria então para um jovem chamado José Saramago a quem, aos 25 anos, a Editorial Minerva publicou um romance?

Vejamos: antes de mais, estava vivo e activo o Neo-Realismo. Com efeito, no ano anterior, Alves Redol publicara Porto Manso (e começava a preparar um mastodôntico Ciclo Port-Wine), Namora Minas de S. Francisco, Vergílio Ferreira o tal Vagão J e Afonso Ribeiro Escada de Serviço. Mas pontificava ainda outra gente: Torga, autor (também em 46) de Odes e o Régio de Histórias de Mulheres e d'A Velha Casa. Ao mesmo tempo, ia aparecendo poesia nova, vinda dos Cadernos de Poesia: sempre em 1946, Jorge de Sena publica Coroa da Terra e, já no ano de 1947 que foi o do precário nascimento de Saramago-escritor, Sophia de Mello Breyner dá à estampa Dia do Mar. Ainda em 1947, o jovem Sebastião da Gama publica Cabo da Boa Esperança; e romancistas de créditos firmados, vindos de outra geração, persistem: Ferreira de Castro publica A Lã e a Neve, Aquilino O Arcanjo Negro, Tomás de Figueiredo A Toca do Lobo. Ainda um evento: forma- se, nesse ano de 1947, o Grupo Surrealista de Lisboa, com Cesariny, O'Neill, António Pedro e José-Augusto França. Decididamente, algumas coisas estavam a mudar, embora já com atraso: o caso do Surrealismo é, neste aspecto, exemplar.

3. Neste panorama, o que vem fazer Terra do Pecado? Quem hoje lê o romance - não sem uma certa sensação de estranheza, diga-se de passagem - percebe que se trata manifestamente de uma tentativa sem sequência, constituindo isso a que Saramago sugestivamente chamou "o livro de uma inexperiência vital". A história é algo complicada e gira em torno de uma viúva (exactamente A Viúva era o título original), de nome Maria Leonor; dela e também de uma sua serviçal, Benedita. Ora Maria Leonor tenta superar o trauma da viuvez e das circunstâncias que a ocasionaram e enrodilha-se numa existência atormentada por esse trauma; num tom que hoje, por certo, Saramago não subscreveria, declara o narrador: "Maria Leonor, no quarto, lutava desesperadamente, com os seus pesadelos e os seus fantasmas". Os pesadelos e os fantasmas de Maria Leonor acentuam-se depois, numa acção romanesca algo complicada, dividida entre o cunhado, um médico e a tal criada, cujo ascendente psicológico sobre a patroa, de mistura com insinuações de chantagem, lembra certamente a Juliana d'O Primo Bazilio (já se sabe: não é fácil, a um jovem escritor, calar ecos de leituras marcantes). Quando Maria Leonor, atormentada pelo remorso, resolve casar com o médico, ocorre um acidente que liquida o noivo, impede o casamento e encerra o romance. Assim se fecha o ciclo do pecado e da sua obsessão, vividos num espaço a que não falta alguma coloração social, sem que, contudo, o conflito nele ocupe a relevância que a ficção neo-realista da época cultivava.

A história é escorreitamente narrada, as personagens são delineadas com correcção e os cenários adequadamente compostos. O romance é, em suma, bem escrito e esse é talvez um dos seus problemas. Um daqueles que Saramago tratou de superar, através de uma longa, lenta e discreta aprendizagem da escrita narrativa, concretizada em trinta anos de imersão no silêncio. Escrita desprogramada, para utilizar uma feliz expressão de José Manuel Mendes, mas também extraordinariamente desenvolta, por um lado, e investida, por outro lado, daquela exigência que é a que pede ao leitor a competente a adesão a um ritmo de efabulação hoje inteiramente consolidado: ritmo feito de quase constantes associações de imagens, de jogos verbais insistentes, de um fluir ininterrupto, tanto ao nível da história, como sobretudo ao nível do discurso. De tudo isso e também da famosa reformulação da pontuação, que não poucos engulhos causa a quem ainda não percebeu que ler um texto literário é (também) aderir a uma lógica da singularidade enunciativa que só persiste e se impõe, na medida em que quem a formula é detentor de um projecto literário sólido e coerente.

Justamente: José Saramago protagoniza e representa um projecto literário sólido e coerente. Mais de meio século depois de um romance que praticamente não teve vida própria, percebe-se que esse projecto foi lentamente sedimentado e solidamente enraizado, para poder afirmar a sua pertinência e dar vida a outros romances: aos que não lembram expressamente Terra do Pecado, mas que talvez não pudessem existir sem ele. E mais seguramente ainda: um tal projecto não seria o que é e o escritor não se teria constituído como o romancista que conhecemos, sem um estádio decisivo, simultaneamente de criação literária e de reflexão meta-artística: esse que se consubstancia no que, no seu tempo próprio, foi ensaio de romance, para depois, à medida que a obra se desenvolvia, se ir afirmando como elemento axial na afirmação do romancista como romancista. Refiro-me a Manual de Pintura e Calgrafia, texto por essa razão merecedor aqui de especial atenção.

4. O segundo acto do Frei Luís de Sousa passa-se, como é bem sabido, "no palácio que fora de D. João de Portugal, em Almada". Como convém a um tal espaço, abundam nele retratos de família, de cujo conjunto se destacam três, evidentemente colocados "em lugar mais conspícuo": "O de el-rei D. Sebastião, o de Camões, e o de D. João de Portugal".

Nenhum destes retratos está aqui obviamente por acaso. Fixo-me no terceiro e na função que ele desempenha e desempenhará mais adiante. Representação de uma figura ao mesmo tempo tutelar e fantasmática, o retrato de D. João de Portugal reitera ali o papel que é o de todos os retratos, em semelhante lugar: compensando uma ausência física, ele impõe uma presença simbólica; sacralizando e institucionalizando uma figura com grande relevo nos planos familiar, social e histórico, o retrato de D. João de Portugal instaura a presença simbólica que repara o desaparecimento físico e estabelece um insistente elo de ligação entre o passado que parece morto, o presente que o drama põe em cena e o futuro próximo.

Esse futuro próximo ocorre pouco depois, quando chega um Romeiro. É então que o retrato cumpre a sua função, como se aquela convicção de autoconhecimento ("Conheceis bem esse homem?", pergunta Frei Jorge; "como a mim mesmo” responde o Romeiro¹) não fosse suficiente para sustentar a afirmação de uma identidade. Para isso, servirá o retrato, espelho agora distorcido pelo devir de um tempo que mudou o retratado sem, contudo, abolir por inteiro a referência a essa identidade que persiste em reaparecer. "Como se me visse a mim mesmo num espelho", diz o Romeiro, antes de, por duas vezes, apontar para o retrato fatídico.

Note-se, porém, o seguinte: o gesto identificador torna-se necessário, porque a figura que entra em cena não basta, só por si, para ser reconhecida como quem é: para D. Madalena e Frei Jorge, ele começa por ser um "bom velho" a quem se promete "todo o amparo e gasalhado". Contudo (e por outro lado), se o retrato ameaça, com a sua presença, aquele espaço, ele vem a ser insuficiente, em si mesmo, para desencadear uma catástrofe. Torna-se necessário que um gesto e sobretudo uma palavra – "É aquele" – completem e aprofundem o potencial de representação que um retrato (afinal precário) traz consigo. Como se a pintura, parecendo algo mais do que a palavra, fosse, afinal, muito menos do que ela, quando está em causa um processo de conhecimento que sem essa palavra ficaria incompleto.

5. Passo agora a José Saramago. E começo por lembrar uma reflexão, formulada em contexto ficcional, sobre a escrita e as suas dificuldades:

Dificílimo acto é o de escrever, responsabilidade das maiores, basta pensar no extenuante trabalho que será dispor por ordem temporal os acontecimentos, primeiro este, depois aquele, ou, se tal mais convém às necessidades do efeito, o sucesso de hoje posto antes do episódio de ontem, e outras não menos arriscadas acrobacias [...] ²
Acto responsável e consequente, a escrita, quando é uma escrita narrativa, é um processo com implicação temporal e com orientação finalística, isto é, subordinando o tratamento do tempo a "necessidades do efeito". Noutros testemunhos – em entrevistas, em crónicas, etc. – é frequente reencontrarmos o romancista debruçado sobre os problemas da escrita narrativa, como que insinuando não apenas as dificuldades que lhe são inerentes, mas também a consciência de que essas dificuldades são superáveis através de uma reflexão sistemática e intensa. Ou, noutros termos, através de uma abordagem que resulta (também) de uma longa aprendizagem.

Farei aqui um parênteses para notar o seguinte: isso a que, sem exagero nem ironia, poderíamos chamar o fenómeno Saramago – que é a explosão para a celebridade de um escritor que, durante muitos anos, passou quase despercebido na nossa cena literária – poderia ser descrito como epifania de um talento literário tardio. A simples referência a essa epifania, aparecendo até como compensação, no plano cultural e literário, para o relativo apagamento da esquerda política de onde o escritor provém, não explica, contudo, grande coisa. Mais: a alusão à tal epifania padece, além disso, de uma coloração romântica e idealista que, desqualificando a criação como trabalho, vem situar-se nos antípodas ideológicos do escritor.

A verdade é que José Saramago, como escritor, não vem propriamente do nada, até porque, em termos de criação literária, o nada é um lugar que não tem outra existência que não seja a dessa imaginação idealista que aqui não faz qualquer sentido. O romancista José Saramago vem, de facto, de uma actividade anterior ao seu primeiro romance de grande projecção pública (Levantado do Chão, de 1980), actividade essa que é a de uma experiência ficcional até há pouco praticamente esquecida (o romance Terra do Pecado, de 1947) e, depois de um longo interregno, a d'Os Poemas Possíveis (de 1966); a par disso, as crónicas em jornais e os contos de Objecto Quase (de 1978) e onde se encontram relatos de uma apuro técnico notável)permitem entender como este romancista se foi constituindo enquanto tal, num processo que, sem esforço nem desprestígio, podemos entender como de aprendizagem narrativa. Desse processo faz parte, como peça fundamental, Manual de Pintura e Caligrafia.

Publicado pela primeira vez em 1977, Manual de Pintura e Caligrafia apareceu, nessa primeira edição, com um subtítulo: Ensaio de romance. Mais tarde, a partir da segunda edição, esse subtítulo deu lugar à indicação que invariavelmente passou a acompanhar as obras congéneres: romance. Seja como for, não é possível rasurar disso que agora surge como romance, o sentido da tentativa que aquele subtítulo insinuava; um sentido que, de resto, completa o título, se neste lermos implicitamente a representação da aprendizagem que todo o manual pressupõe, vector semântico que aqui será explorado, em sintonia com aqueles que atravessam o vocábulo caligrafia.

O título funciona, aliás, em José Saramago, como afirmação de um paradigma discursivo, ou até, nalguns casos, como explícita regência de género. Os romances de Saramago surgem, então, como manual, como memorial, como história, como anuário de incidência biografista, como evangelho ou como ensaio. A dominância do título trabalhado como alusão paradigmática não significa, contudo, uma sujeição passiva a géneros pré-estabelecidos; ela pode trazer consigo (e é isso que normalmente ocorre) a revisão ou mesmo a subversão dos géneros e dos campos institucionais: a enunciação de um novo evangelho (que é também um anti-evangelho), a revisão da história oficial ou a reconstituição de (parte de) uma biografia. Como quer que seja, nada disso é possível à revelia de uma matriz de referência que é o conhecimento e o controlo de estratégias discursivas relativamente estáveis, mas também susceptíveis de questionação. Essa questionação – envolvendo também, como se verá, outras questões para além do género – está inscrita logo em Manual de Pintura e Caligrafia, relato que é tentativa, aprendizagem e reflexão metaliterária sobre a narrativa como modo de representação; e nesse sentido Manual de Pintura e Caligrafia anuncia, como que inscritos no seu código genético, os rumos fundamentais de desenvolvimento da ficção de José Saramago. 

6. No início de Manual de Pintura e Caligrafia, pode ler-se o seguinte:

"Continuarei a pintar o segundo quadro, mas sei que nunca o acabarei".³
Trata-se, pois, de iniciar o relato com a menção expressa de um trabalho artístico em curso, inscrito no fluxo de um tempo narrativo que parece confundir-se com o fluxo do trabalho artístico. Mas ao mesmo tempo, esse trabalho artístico sugere desde logo uma crise e uma precariedade: a convicção de que o quadro nunca será acabado, porque o sujeito artístico tem a consciência de uma inépcia a vários títulos decisiva:

Enquanto transporto meticulosamente as proporções do modelo para a tela, ouço um certo murmúrio meu interior a insistir que a pintura não é nada disto que eu faço. (p.41)
Este é, por conseguinte, cada vez mais um artista em mudança, buscando encontrar noutra linguagem uma capacidade de entendimento das coisas que a pintura não viabiliza. Superando a pintura, o artista procurará, então, "relatar por escrito" (p. 51) e, mais do que isso, chegar a um grau superior de entendimento: "Perceber. Exactamente o que não pude alcançar enquanto pintei" (p. 55). 

Da pintura à escrita (que será uma escrita narrativa), desenvolve-se um processo de conhecimento que deriva para um autoconhecimento não isento de hesitações, incertezas e tentativas. Exactamente porque desse processo não está ausente o sentido da aprendizagem e das suas dificuldades, a escrita que o pintor frustrado levará a cabo oscilará entre vários géneros, todos eles dotados de fortes potencialidades subjectivas: a narrativa de viagens, a crónica e a autobiografia, harmonizadas no culto da narrativa como ensaio. O desenlace natural deste trajecto é a constituição do romance (que é também um acto de consciência) e o surgimento do romancista.

7. Tratarei agora de aprofundar, para além do que está projectado no início, as teses que Manual de Pintura e Caligrafia ilustra e demonstra: a de que o ensaio envolve a resolução de um problema; a de que, para este artista, a pintura (esta pintura) é escassa como procedimento de representação; e a de que pela palavra narrativa se pode atingir uma plenitude e um rigor de representação arduamente perseguidos.

Se a pintura aparece, em Manual de Pintura e Caligrafia, como uma estética em crise é porque, de um ponto de vista estético e funcional, ela é uma pintura figurativa e ainda porque, de um ponto de vista sociocultural, ela é produzida por encomenda: a encomenda de um retrato. A posição do artista, num tal contexto, é de apagamento. A ruptura a operar tratará, então, de recusar a estabilidade cómoda e esvaziada de ousadia que é a daquela pintura figurativa e primariamente realista, ao mesmo tempo que será valorizada a representação como pluralidade.

A viagem – para além de vir a ser um tópico saramaguiano, depois de Manual de Pintura e Caligrafia – é, nesta narrativa, o motivo de concretização da mudança, traduzida na deslocação física, na relação com outros lugares, na dinamização de um olhar em constante mutação (embora sendo o olhar do mesmo sujeito) e, consequentemente, na constituição de uma pluralidade de imagens. Nesse sentido, a tentativa que Manual de Pintura e Caligrafia leva a cabo não pode alhear-se de uma tradição intertextual com a qual mantém afinidades culturais evidentes: são elementos fundamentais dessa tradição as Viagens na Minha Terra de Garrett, a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto e, de um modo geral, as relações simbólicas e funcionais desde sempre existentes entre viagem e História, viagem e autoconhecimento e, obviamente, viagem e narrativa, sendo certo que esta tem sido entendida como estratégia discursiva legitimada enquanto tal precisamente pela dinâmica (espacial e temporal) da viagem.

A viagem que neste caso surge como deslocação paradigmática é a que conduz a Veneza. De facto, Veneza constitui, no vasto imaginário das viagens, o lugar por excelência em que ao viajante se revela um mundo singularmente novo, diferente de quaisquer referências ou modelos anteriores. Significativamente, o narrador-viajante procura transcender, em Veneza, mesmo os espaços fixados nos roteiros:

Fugi deliberadamente aos espaços abertos e deixei- me perder, sem mapa nem roteiro, pelas ruas mais tortuosas e abandonadas (as calli), até dar por mim no coração obscuro de uma cidade que enfim se revelava. (p. 156)
Assim, é "sem mapa nem roteiro", sob o signo da aventura e da radical novidade que se conduz um percurso de conhecimento inteiramente despojado. A "única Veneza real" é a que se revela para além das imagens consagradas: a Veneza como jangada, a da pintura de Fabrizio Clerici, a da Morte em Veneza de Thomas Mann ou a da sua remake cinematográfica por Visconti.

Põe-se em causa, deste modo, a hipótese de uma representação modelada numa imagem única, seja qual for o objecto sobre o qual ela incida. Ampliando essa recusa, chega-se à refutação da existência de uma realidade singular ou de uma História irreversivelmente fixada; o que arrasta, por outro lado, a valorização do sujeito do conhecimento artístico (ou histórico), valorização que pode chegar à instância do autoconhecimento: essa em que o sujeito se faz objecto da representação. Não se pense, contudo, que a pintura é drasticamente enjeitada como procedimento de representação. Mais importante e significativa do que esse suposta abolição é a afirmação da possibilidade de uma outra pintura, que é também uma outra representação. Num determinado momento da narrativa, o pintor revolta-se e decide começar um segundo quadro; consciente, todavia, de que este quadro é (também ele) um ensaio, o pintor oculta essa outra procura de uma verdade artística. Com efeito, conforme ele mesmo (como narrador) explica, "este [segundo quadro] admitia e exigia uma liberdade diferente, uma adição de instabilidades, consoante os elementos novos de que eu dispusesse ou julgasse dispor naquilo que, para mim, era então a procura da verdade de S." (p. 102). Essa procura da "verdade de S." (o objecto do retrato) pode exigir até uma desfiguração do modelo ou, noutros termos, a constituição de uma entidade representada que é "semelhante (ao modelo), em mim". No final, a representação pictórica é mais um auto-retrato – porque testemunho do artista sobre si mesmo – do que um retrato propriamente dito, pois que este acaba por ser apenas pretexto e veículo de autoconhecimento.

8. Tal como, pela pintura-ensaio, se aprende a buscar a verdade, também se aprende uma semelhante busca utilizando as palavras como instrumentos de representação.

Um livro em cujo título se inscreve o sentido da aprendizagem da escrita (que é primordialmente a da própria caligrafia, naquilo que tem de mais pessoal e elementar) remete, de forma mais lata, para a aprendizagem das palavras e do estilo in fieri. Emerge aqui, de forma decisiva, o que na ficção narrativa de Saramago será a vocação para desvelar sentidos ocultos nos vocábulos, significados ambíguos e mesmo tortuosos, paronomásias e corruptelas. Diz o narrador:

Brinco com as palavras como se usasse as cores e as misturasse ainda na paleta. Brinco com estas coisas acontecidas, ao procurar palavras que as relatem mesmo só aproximadamente. (p. 88)
Assim, o gesto lúdico assumido pelo pintor-narrador encerra metaforicamente o jogo que é a criação artística e consagra a ficção como modelação de um mundo que não é uma mentira, mas antes um fingimento sério.

Por fim, o ensaio que a narrativa leva a cabo acaba por ser sobretudo um exercício autobiográfico. Como se a aprendizagem da escrita deslizasse para uma aprendizagem da própria identidade, descoberta também por força dos cruzamentos operados entre o registo da autobiografia e o dos outros géneros que com ela convivem: a crónica, que é sobretudo conhecimento do tempo presente, e a narrativa de viagens, que vem a ser consciencialização da alteridade e da mudança. O que significa, por outro lado, que o discurso autobiográfico deve aqui ser entendido de forma transcendente e metamorfoseada: toda a acção de um sujeito enunciada por ele resolve-se em discurso autobiográfico, do mesmo modo que toda a criação artística, enquanto investimento individual, é mediatamente autobiografia. Noutros termos:

Creio que a nossa biografia está em tudo o que fazemos e dizemos, em todos os gestos, na maneira como nos sentamos, como andamos e olhamos, como viramos a cabeça ou apanhamos um objecto do chão. É isso que a pintura quer fazer [...]. Uma narrativa de viagem serve tão bem para o efeito como uma autobiografia em boa e devida forma. A questão está em saber lê-la. (p. 149)
Quando deriva do primeiro para o segundo retrato, o pintor prepara-se para operar uma outra e decisiva deriva: da representação pictórica para a representação narrativa. Noutros termos: de pintor para escritor. E é este quem se descobre capacitado para operar um aprofundamento (que a pintura não facultava) da relação com os outros e consigo mesmo, factor de um conhecimento superior, com incidência nos planos ético-ideológico e afectivo. Assim, é a narrativa que revela a possibilidade de uma representação dotada de dupla implicação: a implicação histórica, que é a que viabiliza a (auto)descoberta do sujeito político; a implicação amorosa, que é a que faculta a (auto)descoberta do sujeito amoroso. Por isso, quando está a terminar o relato está, ao mesmo tempo, a começar um novo homem:

Esta escrita vai terminar. Durou o tempo que era necessário para se acabar um homem e começar outro. Importava que ficasse registado o rosto que ainda é, e se apontassem as primeiras feições do que nasce. (p. 308)
9. A representação da pintura em Manual de Pintura e Caligrafia não se cinge, pois, a uma presença ancilar, de restrita identificação, como a que encontramos no Frei Luís de Sousa: neste, os quadros existem como elementos decorativos, não transcendendo a estrita função indicial que, no seu contexto próprio, lhes cabe.

Em Manual de Pintura e Caligrafia, romance em tempos anunciado como ensaio, a pintura legitima a sua presença por se afirmar como elemento decisivo do processo de aquisição e maturação de um modo de ser artístico que carece da palavra para se completar. No termo de certa forma provisório de um árduo trajecto de aprendizagem, é a escrita que desvela o segredo da descoberta de si, dos outros, do mundo e dos modos sinuosos, singulares e irrepetíveis de o representar; de tudo isso e também da pertinência de uma outra pintura, mais consequente e semanticamente densa, de certa forma defluente da escrita:

Prolongamento deste manuscrito, escrito ele próprio à mão, o retrato há-de copiar alguma coisa. [...] Desejará, no entanto, dizer mais, como cópia, do que esteja dito naquilo que copiar.
Conclusivamente, pode afirmar-se que, na escrita ensaiada e aprendida por um artista que se vai descobrindo, encerra-se muito do que vem depois, na obra deste escritor: a consciência da representação artística como veículo de subversão de imagens estabelecidas, de figuras e de eventos históricos canonizados pelos discursos oficiais; a descoberta da narrativa como revelação do mundo, do devir do tempo e das transformações da História; a afirmação da singularidade (dos olhares, dos sentidos redescobertos) como critério e veículo de conhecimento; a noção de que a validade do artista é também a do homem dele indissociável.

Tudo isso e ainda o prenúncio da descoberta do mágico poder inventivo de símbolos, alegorias e estranhas personagens que abundantemente têm povoado a ficção deste escritor: passarolas voadoras, mulheres de visão penetrante, jangadas e cegos à deriva, poetas que sobrevivem à morte de quem os gerou, obscuros escribas que reinventam a História, burocratas à procura de identidades perdidas. Com eles (e antes deles), encontra-se um pintor que atingiu a necessidade de revelar a escrita – e de se revelar com ela –, em gesto de irreversível afirmação, acontecida em 1974, no dia mais importante da História portuguesa contemporânea, dia de jubilosa libertação dos homens e das ideias; é nesse dia que sobrevém a evidência e a convicção do poder singelamente revelador das coisas escritas: "Eu disse: «Amanhã vamos buscar o António.» M. apertou-se muito contra mim. «E um dia destes darte-ei uns papéis que aí tenho. Para leres.» «Segredos?», perguntou ela, sorrindo.«Não. Papéis. Coisas escritas.» (p. 311)



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Notas
¹ Frei Luís de Sousa; apresentação crítica, fixação do texto e sugestões para análise literária de Maria João Brilhante; Lisboa, Comunicação, 1982, p. 132.

² A Jangada de Pedra, Lisboa, Caminho, 1986, p. 14.

³ Manual de Pintura e Caligrafia, 4ª ed., Lisboa, Caminho, 1993, p. 39. A esta edição referem-se as citações deste romance.



[REIS, Carlos. Diálogos com José Saramago. Lisboa: Caminho, 1998, p.8-20]