A bagagem do viajante
Crônicas, 1973
Edição brasileira de A bagagem do viajante.
Capa de Hélio de Almeida sobre relevo de Arthur Luiz Piza
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O leitor brasileiro que aprendeu a admirar e amar José Saramago sobretudo por seus romances de largo fôlego como Memorial do convento ou O Evangelho segundo Jesus Cristo, encontrará nestas páginas uma outra faceta do autor, igualmente admirável: a de um mestre no relato brevíssimo, do registro instantâneo, da expressão concisa.
A mudança, entretanto, é apenas de ritmo e de tom: a voz que fala nestas crônicas é a mesma voz segura que guia o leitor pelos labirintos de suas narrativas mais complexas - só que aqui num timbre mais cálido, próximo do informal, como se estivesse a conversar diante de uma lareira ou de uma mesa de bar.
Poucas conversas serão tão interessantes e proveitosas, e de temas tão variados, e de abordagem tão original. Pois, seja evocando uma festa popular ou descrevendo o encalhe de uma baleia na foz do Tejo, comentando um filme de Rossellini ou especulando sobre a publicidade, Saramago é sempre Saramago. Em sua prosa (no duplo sentido da palavra), o interlocutor nunca deixará de encontrar a aguda lucidez, a inquietação de espírito e a exigência ética que perpassam os textos mais conhecidos do escritor. Mas não se trata de um sermonista ou de um explicador do mundo: na bagagem desse viajante cabem também a dúvida, a perplexidade, o humor e a auto-ironia.
Um dos traços mais admiráveis destas crônicas, publicadas na imprensa portuguesa entre 1969 e 1972, é justamente a renovada atualidade de sua reflexão sobre as armadilhas da linguagem. No fundo, o que José Saramago faz aqui é chamar a atenção do leitor para as máscaras com que a palavra - seja ela da religião, a da política, a da publicidade ou a do homem da rua - muitas vezes esconde o mundo. Isso só é possível por meio de um escrita precisa e autoconsciente, atenta a cada palavra, a cada entrelinha, a cada fresta por onde se poderia insinuar um clichê ou um lugar-comum. Para um autor como Saramago, a literatura é uma viagem que transforma todos os lugares em lugares incomuns. Ver a cambiante paisagem da vida com olhos livres - esta é, se há alguma, a lição deste livro.
[José Geraldo Couto. Orelha da edição brasileira, publicada pela Companhia das Letras, 2002]