Carta de Lisboa
Richard Zenith para o Caderno Literário do Times (Times Literary Suplement), 23 de Outubro de 1998
No livro de José Saramago, Manual de pintura e caligrafia (1977), um pintor de talentos modestos, mas de grandes ideais, é convidado, durante os últimos anos do regime salazarista, a executar o retrato de uma família de fortuna recente. A tensão apropria-se do relacionamento, e a família descontente com o retrato pouco lisonjeiro que tomava forma no cavalete, cancela a encomenda. Oferece ao pintor o pagamento pelo trabalho até aí desenvolvido, que apesar de tudo quer guardar, mas H., anti-burguês, prefere ficar com o retrato inacabado e a sua auto-estima. Este Manual, pelo meio do qual surgem as pouco inspiradas entradas dum diário de viagem em Itália (a «caligrafia» de H.), não é um grande romance, mas constitui uma intrigante peça de uma oblíqua ou mesmo acidental autobiografia. José Saramago que, nesse momento da sua carreira, era ainda um medíocre autor de ficção, já adquirira o hábito de dizer não, e de seguir obstinadamente o seu caminho algo errático, que o tornou um dos escritores mais marcantes do final do século XX.
Saramago, particularmente crítico do capitalismo global e especialmente hostil em relação ao sistema político-econômico norte-americano, sem dúvida escarneceria do otimismo de Horatio Alger que atualmente parece justificar a doutrina capitalista, mas constitui o perfeito exemplo do self-made-man de letras, no seu sentido mais profundo. Este não é apenas um autor cujo talento natural se desenvolveu graças ao trabalho árduo, ganhando reconhecimento com a persistência; com Saramago o próprio talento parece ser o produto dum longo trabalho de paciência.
O homem agraciado com o Prêmio Nobel da Literatura de 1998 revelou-se não só tardia, como lentamente. Nascido em 1922 numa pobre família rural do Ribatejo que se mudou para Lisboa dois anos depois, Saramago foi enviado para a escola comercial e começou a trabalhar, aos dezoito anos, como mecânico. Foi nessa mesma época que se iniciou na literatura, passando os serões na biblioteca pública. Embora Manual seja frequentemente considerado o romance de estreia de Saramago, na verdade o seu primeiro esforço, Terra do Pecado, foi publicado em 1947. E foi tudo o que escreveu no domínio da ficção, durante trinta anos. Talvez tenha sido bom Saramago parar naquele momento. A sua primeira novela, escrita num competente estilo herdado do século XIX, não contém qualquer marca do gênio presente em Memorial do Convento (1982) e nos seis romances seguintes. «Nos primeiros cinquenta anos de vida devemos aprender, só depois trabalhar, e depois morrer». Disse Saramago, cuja longa aprendizagem incluiu o casamento e uma filha, empregos no Estado, numa companhia de seguros, numa editora e no jornalismo - não como repórter, mas como crítico literário e comentador político. As peças jornalísticas de Saramago foram reunidas em vários livros do princípio dos anos 70, e publicou ainda três volumes de poesia.
Sempre comprometido nos movimentos de esquerda que, ora aberta, ora clandestinamente, se opunham a Salazar, Saramago inscreveu-se no Partido Comunista em 1969. Um ano após a revolução de Abril de 1974, Saramago tornou-se co-editor do maior jornal de Lisboa, Diário de Notícias, mas foi forçado a sair em Novembro de 1975, quando a facção mais moderada derrotou os comunistas.
Saramago passou os anos seguintes a fazer traduções. Foi-lhe encomendado um livro de viagens, Viagem a Portugal (1981). E voltou a escrever ficção. Manual de pintura e caligrafia era uma espécie de rascunho demasiado esquemático para ser um romance verdadeiramente bom, mas constituía uma tentativa: arte aliada às ideias, ideais e à expressão da experiência. Esta intenção tornou-se ainda mais forte em Levantado do Chão (1980), uma saga sobre os camponeses do Alentejo que nos três primeiros quartos deste século lutam contra a opressão e a fome. A realização plena chegou com Memorial do Convento, cujo título em inglês (Baltazar & Blimunda) se refere à quase devoção entre os dois amantes, que vogam sobre e entre os tristes acontecimentos da história portuguesa no princípio do século XVIII, quando o pouco esclarecido D. João V forçou milhares de camponeses a arruinarem-se na construção do convento de Mafra, uma estrutura tão pesada como delicada. Este é, entre outras coisas, um romance político que não se limita a opôr oprimidos a opressores. Só as classes mais elevadas beneficiavam das riquezas que então chegavam do Brasil colonial, mas a ignorância, a cegueira e o gosto pelo sangue eram traços generalizados. As touradas e os autos-de-fé da Inquisição serviam de divertimento quer a ricos, quer a pobres.
Saramago, ainda um militante comunista, nunca deixou de apontar o dedo à exploração dos pobres pelos ricos, mas está francamente mais preocupado com a corruptível natureza humana. Ver e não ver são imagens recorrentes, e a arte da percepção perfeita um dos temas obsessivos do autor. O antigo soldado Baltazar, chamado Sete-Sóis porque só pode ver à luz, apaixona-se pela clarividente Blimunda, chamada Sete-Luas porque pode ver no escuro, e juntos voam na Passarola, uma máquina voadora concebida pelo Padre Bartolomeu, uma figura histórica introduzido na ficção, juntamente com Domenico Scarlatti, que no mundo de Saramago está mais interessado em voar do que nos seus deveres como professor de música da filha do rei. Estas personagens, cúmplices no seu olhar, acreditando em si próprios e uns nos outros, conseguem sobrepor-se ao determinismo histórico. É a vontade humana que, de acordo com o Padre, faz voar o seu engenho.
Grande e sumtuoso, misturando habilmente fantasia e história e empregando um narrador irônico, mas simpático, Memorial do Convento foi o primeiro grande romance de Saramago e o seu primeiro sucesso internacional. As reflexões do autor, que em Manual de pintura e caligrafia surgiam de forma entediante e pouco imediata, dissolvem-se agora na trama da história. Com O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), a cronologia avança para Lisboa em 1936 enquanto a ironia e as reflexões ontológicas se aprofundam e tornam mais sofisticadas. O Dr. Ricardo, um heterônimo criado por Fernando Pessoa (l888-1935) supostamente exilado no Brasil em 1919 devido às suas simpatias monárquicas. No livro de Saramago, Reis, ao ser informado por outro heterônimo, Álvaro de Campos, da morte de Pessoa, regressa de barco a Lisboa, onde é confrontado com a sua cidade natal e as suas raízes culturais, e com o fantasma do seu criador de identidade problemática, que o visita e envolve num diálogo tipicamente pessoano. Saramago, que conhece a obra de Pessoa, diverte-se com isso e presta homenagem ao maior poeta português desde Camões, e o romance funciona em tantos níveis que os leitores estrangeiros, mesmo que não atinjam o jogo intertextual, deixar-se-ão fascinar pelo cenário (uma Lisboa escura e chuvosa, fascista, tornada ainda mais obscura pelas sombras da Guerra Civil de Espanha, que estava iminente), pelos retratos dos vários estratos sociais, pelos jogos de espelhos e labirintos à La Borges, pois se as referências a Pessoa podem perder-se, as paráfrases provocadoras são elas próprias apelativas. Saramago é, por vezes, acusado de ser retórico, sem o recurso às referências físicas que se esperam dum romance (especialmente quando escrito ou traduzido num inglês que resiste às abstrações), mas O Ano da Morte de Ricardo Reis recusa essa carga. O retrato que nos dá da Lisboa dos anos trinta é joyceano no detalhe, e a inclusão de Ricardo Reis na peregrinação a Fátima é muito convincente.
Saramago tem um gosto especial por grandes e fantásticas metáforas - o seu romance seguinte, A Jangada de Pedra (1986), põe a Península Ibéria a deslocar-se do resto da Europa - mas os viajantes são detidos pelas grandes e concretas realidades que têm de admitir. Alguns chamaram a Saramago um realista mágico, mas seria melhor chamar-lhe um realista profundo, no sentido em que o seu realismo está frequentemente sob ou atrás da história imediata. A posição de Saramago é esclarecido por Ricardo Reis, que refere «o objectivo da arte não é a imitação», mas a invenção duma realidade alternativa, que realça «a realidade que queremos admitir. A diferença entre elas demonstra-as mútuamente, explica-as e mede-as, a realidade como invenção que foi, a invenção como realidade que será». Saramago reforçou a tradição continental dos romances baseados em ideias, em detrimento do modelo doméstico de Updike, que se tem estendido dos Estados Unidos à Europa. Saramago também recusou uma proposta de Hollywood para filmar Memorial do Convento, embora tenha permitido que o compositor italiano Azio Corghi adoptasse o romance para uma ópera.
Uma das ideias que mais impressiona Saramago é o modo como os pequenos erros - acidentais ou deliberados - podem ter enormes consequências, como a História do cerco de Lisboa divertidamente demonstra. Raimundo, um tímido e pacífico revisor de provas, adquire auto-afirmação ao rever a História, introduzindo uma nota que alteraria drasticamente a história do cerco à Lisboa moura, em 1147. Os editores descobrem o erro antes de ser demasiado tarde, mas a superior hierárquica, Maria Sara, está encantada com este acto de revolta, ele está encantado com ela, e a sua vida pessoal dá uma volta radical. Ela encoraja-o a escrever uma história de Portugal baseada na falsa nota ao cerco de Lisboa, o que ele faz, e o romance desenvolve-se num fascinante choque entre a História verdadeira e a falsa, entre o Portugal de hoje e o do século XII, entre o amor do revisor por Maria Sara e o amor dum soldado por uma tal Ouroana, entre a religião católica e o Islão.
Uma previsível polêmica rodeou o livro de Saramago, O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), no qual Deus usa um Jesus totalmente humano para fundar uma religião repressiva chamada catolicismo. A Igreja não perdoou a heresia, e o autor não perdoou ao governo conservador ter retirado o livro «blasfemo» da corrida para o Prêmio Literário Europeu. Ele afirma que esta decisão o moveu a trocar Lisboa por Lanzarote, nas Canárias, onde vive com a sua segunda mulher. Saramago mantém-se ativo na vida literária portuguesa, e as notícias do seu Nobel foram entusiasticamente recebidas no seu país natal. Os dois maiores diários de Lisboa dedicaram-lhe as dez primeiras páginas das suas edições de 9 de Outubro. Mas houve quem lamentasse que as suas primeiras entrevistas e conferência de imprensa tivessem ocorrido em Espanha, onde toda a sua produção literária incluindo quatro peças de teatro e um volume de contos - foi traduzido. Saramago, cético em relação ao que chama «a obsessão europeísta», teria gostado que espanhóis e portugueses esquecessem velhas rivalidades e se unissem em torno duma consciência ibérica.
O tema de ver e não ver foi levado tão longe quanto possível em Ensaio sobre a Cegueira (1995), o último romance que o tradutor de Saramago, Giovanni Pontiero, traduziu maravilhosamente para inglês, já nos seus últimos dias de vida. Localizado em nenhum tempo e em nenhum espaço particulares, e povoado por personagens sem nome, esta alegoria lembra Kafka, que Saramago considera um dos três grandes escritores do século. As suas outras escolhas são Borges, para quem a cegueira não foi apenas uma metáfora, e o ultra-racional Pessoa, que declarou (através de um dos seus heterônimos, o clarividente Alberto Caeiro) «O que interessa é saber como se vê, / Saber como se vê sem ver». O romance de Saramago - um dos mais importantes que apareceram na Europa deste século - não é sobre a cegueira congênita, mas sobre o não saber ver, ou sobre o recusar-se a ver. A sua habitual falta de pontuação, a mudança de tempos verbais e os narradores alternantes ou ambíguos aumenta o mistério, o tom alegórico desta história, na qual todas as personagens, exceto uma, cegam misteriosamente.
Um assunto pesado, da parte dum escritor que admite ser «pessimista a ponto de não acreditar na cura da humanidade. Passamos dum desastre a outro, sem aprender com os nossos erros». Mas Saramago não desespera completamente (de outro modo como continuaria comunista?), e quando conta uma história triste, dá-lhe um toque de fantasia, com uma realidade inventada na qual se torna mais fácil respirar. A máquina voadora em Memorial do Convento constitui um símbolo de liberdade mas também de luz. É a memória da Passarola que mantém as duas personagens, durante os longos e obscuros dias da construção do Convento, e a luz é o que salva os livros de Saramago do peso que os títulos parecem prometer (o editor norte-americano de Memorial do Convento preferiu Baltasar & Blimunda a Annals of the Convent, proposto por Giovanni Pontiero, e Ensaio sobre a Cegueira ficou Blindness). O humor e a ironia são os agentes mais óbvios da escrita de Saramago, mas ainda mais importantes são as relações amorosas, que nas suas histórias são quase sempre alegres, embora problemáticas. Mesmo no horrível asilo onde são mantidos os cegos do penúltimo romance de Saramago, somos momentaneamente aliviados por um jovem casal que cega e alegremente faz amor no chão sujo.
A última novela de Saramago, Todos os Nomes (1997), trata de um empregado que procura obsessivamente, numa conservatório do registo civil, os dados duma mulher anônima que nasceu e morreu em Lisboa. Esta é a essência de Saramago: pessoas comuns que procuram outras, e por amor, sem que necessariamente saibam quem é o outro. O funcionário pode esperar qualquer pessoa, e muito especialmente o autor. A pesquisa nunca é fácil - o funcionário nunca saberá o nome da mulher mas continuará, esperançado. E no final de Ensaio sobre a Cegueira, algumas personagens readquirem a visão. Uma delas afirmará: «a experiência ensinou-nos que não há cegos, apenas cegueira».
Richard Zenith para o Caderno Literário do Times (Times Literary Suplement), 23 de Outubro de 1998