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A José Saramago, primeiro Nobel de Literatura atribuído a Portugal


O Nobel demorou um 1 século! O autor português, José Saramago, aceitou o prêmio com um prazer não dissimulado.

Cinco minutos antes de partir do aeroporto de Frankfurt, para Espanha, José Saramago foi informado de que lhe fora atribuído o prêmio Nobel. O seu editor português insistiu em que voltasse à Exposição Internacional do Livro, onde as pessoas já manifestavam o seu entusiasmo. Quem diria que, com 77 anos, seria objeto de tantas câmeras de televisão, tantas quantas podiam encontrar-se numa cidade como Frankfurt. Uma multidão de fotógrafos, um mar agitado de jornalistas. Uma torre de Babel, e no centro, um senhor idoso, tímido, de terno cinza, que a "única coisa que tinha feito" era ter ganho o prêmio Nobel de Literatura de 1998.

Saramago não devia, logicamente ter sido apanhado de surpresa, porque, como ele próprio disse, era candidato há muitos anos. "No princípio tinha esperanças, mas com o tempo desvaneceram-se. Parti de Frankfurt porque me sentiria humilhado se o prêmio fosse atribuído a outro autor. E porque poderiam pensar que tinha ficado só para receber os aplausos". A artilharia pesada - internacional da literatura portuguesa era desta vez uma personagem dos seus livros, um homem simples, que vê a sua vida derrubada pelo peso dos fatos.

Os portugueses festejavam; "azar já acabou" pareciam dizer por motivo do primeiro Nobel para a literatura portuguesa. Com rosas vermelhas a acenarem entre as câmeras e os alto-falantes, foi acolhido pelos "seus" e foi significativa a componente nacional nestes contraditórios tempos da globalização.

"A minha alegria é mais patriótica", foi uma das suas primeiras declarações, interrompidas devido à multidão compacta. Bastante mais tarde, durante a conferência de imprensa, organizada com todas as formalidades alemãs, Saramago prosseguiu: "Demorou um século para o Nobel chegar a Portugal. Os autores portugueses trabalham duramente e havia outros que mais mereceriam receber o prêmio. Espero que o mesmo ajude o meu país e o torne mais conhecido".

Familiarizado com conflitos culturais, sejam eles a nível nacional ou pessoal, Saramago foi cuidadoso e muito justo nas suas declarações. Dedicou o Nobel a todos nós - que procuramos, como ele, compreender quem somos- os que não se contentam com agradecimentos formais. Referiu-se aos tradutores e editores e a todos quantos trabalharam para difundir a sua obra pelo Mundo. "A sua opção de esquerda tem a ver com o seu prêmio agora ou com a sua preterição no passado?", foi uma pergunta, e ele respondeu "quero crer que os critérios são estritamente literários", evitando qualquer outra polarização.

Os espanhóis também ficaram felizes, e Saramago disse então a um jornalista espanhol: "Permita-me considerar os premios Nobel espanhóis, também portugueses".

Patriota, mas de um modo quase esquecido, exteriormente calmo, mas interiormente pessoa de tensões e conflitos, Saramago instalou-se ontem em Frankfurt no pedestal dos "mega-stars" dos autores, uma espécie consumida aqui com bulimia. Porém, ele próprio parece pensar noutras coisas.


I Kathimerini, 9 de Outubro de 1998.

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José Saramago, o compadecido

As agonias humanas são o tema do escritor Português que foi honrado com o Nobel de Literatura

Desde quinta-feira, o prémio Nobel de Literatura pertence, pela primeira vez, a um português: José Saramago, escritor popular no seu país, muito traduzido no estrangeiro, foi honrado com a prémio da Academia Sueca por uma obra que, segundo o veredicto dos juízes, "com narrações alegóricas fantasiosas, humanidade e ironia nos ajuda a compreender uma realidade fugidia". A utilização radical da tradição, um realismo mágico que evoca os escritores latino-americanos, uma linguagem rica, densa e particular, que consegue unir uma visão do mundo materialista - por causa da sua posição política - com a riqueza do barroco, compõem a fisionomia do escritor Saramago.

Este comunista militante, que desejou seguir o movimento e as contradições da história através dos olhos de homens simples, este ateu, - que provocou a cólera da Igreja, apresentando, no seu romance O Evangelho segundo Jesus Cristo, um Jesus que cede nos desejos humanos, considera-se hoje o melhor escritor vivo português.

Um escritor polígrafo - com os seus romances Terra do Pecado (1947), Manual de Pintura e Caligrafia(1977), Memorial do Convento (1982, em grego pela editora Sihroni Epohi), O ano da morte de Ricardo Reis (1984, em grego pela editora Alexandria, um "livro hermético, genial", segundo o comentador do diário "New York Times" Edmunde White), Jangada de Pedra (1986), A história do cerco de Lisboa (1989, em grego pela editora Kastanioti), O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991, em grego pela editora Kastanioti) e Ensaio sobre a Cegueira (1995) - e honrado com muitos prêmios, ocupou-se ainda com sucesso de poesia, teatro e ensaios. Porém, o gênero de que mais gosta, com o qual restabelece um relacionamento muito mais familiar com os seus leitores, são os Cadernos: ultimamente, publica um volume por ano. E os Cadernos não são aquilo que alguém espera - uma crônica privada, que se limita a descrições da rotina de trabalho do escritor, ou de pequenos acontecimentos da sua vida cotidiana; antes pelo contrário, trata-se de um balanço, muito emotivo, das ideias e dos sentimentos dos seus leitores.

Porque Saramago é um dos poucos escritores do nosso tempo que investem substancialmente na relação com os seus leitores. Talvez o funcionamento do escritor como mentor intelectual ou guru espiritual apareça ultrapassada, uma reflexão atrasada do papel que desempenhava Jean Paul Sartre e os intelectuais franceses nas décadas de 50 e 60, contudo, ele não hesita em responder às perguntas a que os seus leitores ousam submetê-lo, as quais cobrem um amplo espectro: dos problemas morais do nosso século até aos mistérios da reencarnação – "O relacionamento estreito de Saramago com os seus leitores deve-se a três factores", assinalava caracteristicamente num artigo, mais antigo, no Tímes Literary Supplement Luís de Sousa Rebelo, Leitor no King's College de Londres, "À sua preferência por assuntos de interesse universal, à sua certeza de que todos os homens têm expectativas comuns e à sua fisionomia, como espelho da personalidade".

Saramago ocupa-se corajosamente de temas complicados e controversos - uma atitude que suscitou em Portugal reações pusilânimes, quase vingativas: em 1992, o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros (sic) Sousa Lara retirou o nome do escritor das candidaturas de Portugal para o Prêmio Europeu de Literatura, porque com O Evangelho segundo Jesus Cristo ofendeu as convicções religiosas dos Portugueses e provocou discórdia no país, e a Igreja Católica tinha condenado a obra como blasfema e impura. Na altura, Saramago enfrentou os seus acusadores com um "não vim trazer a paz, mas sim a espada", e, desgostoso, retirou-se para Lanzarote, uma das ilhas das Canárias. Mas não era a primeira vez que se degladiava com os governantes.

É conhecida a sua oposição ao regime ditatorial de Salazar, a sua posterior posição anticonformista, a sua temática provocante, pois o escritor não hesitou em julgar, através da suave alegoria da História do cerco de Lisboa e da Jangada de Pedra a história europeia e a unificação europeia.

A sua contestação para a Europa Unida reproduz-se na Jangada de Pedra com uma parábola: a Península Ibérica separa-se do Continente Europeu, e sozinha navega no Atlântico Norte - uma metáfora para a procura da identidade dos Espanhóis e Portugueses, fora da fisionomia estandardizada da União Europeia.

Igualmente provocante é o tema do seu último romance Ensaio sobre a Cegueira. Aquilo que a mundo contemporâneo perde não é a vista, mas a lógica, proclama Saramago, nesta sua nova alegoria, onde uma plena comunidade anônima, à exceção de uma pessoa, é acometida pela cegueira, e onde não existem personagens, mas somente vozes, que se radicam num espaço mítico.

A ansiedade da época contemporânea é o tema de Saramago, se bem que recorra, para reproduzi-la, ao realismo imaginário e à rica fauna do jardim da história universal.

O homem, sozinho e sofrendo com os outros, com as suas perguntas não respondidas e as suas agonias, é o centro da narração - da narração elegante de Saramago no tom verbal do poeta homérico, que percebeu a mente de muitos homens e mostrou a sua compaixão.


Katerina Shina. I Kathimerini, 11 de Outubro de 1998