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Saramago e a Comunidade dos Cegos

Conheci o grande romancista português José Saramago, Prêmio Nobel da Literatura deste ano, em 1992. Estava então de visita a Lisboa, como convidado pessoal do Presidente da República Mário Soares, e de sua mulher Maria Barroso [... ]. No decurso de um almoço em minha honra, no Palácio de Belém, perguntei a Maria Barroso, que estava sentada à minha direita: «Na sua opinião, se eu quisesse conhecer apenas um escritor durante esta visita, quem me aconselharia?». Ela respondeu: «Se quiser um escritor consensual, eu diria António Lobo Antunes. Mas se quiser um escritor diferente dos outros, aconselho José Saramago». E foi assim, que a discussão à volta da história, da política, do teatro e do cinema, foi interrompida para se concentrar neste estranho escritor que abandonou a literatura com 25 anos depois de ter escrito o seu primeiro romance Terra do Pecado (1947), e isto durante aproximadamente 30 anos. Foi só em 1975 que voltou à literatura com o [... ] livro O Ano de 1993. O último romance valeu a Saramago o maior prêmio literário, embora a sua obra não ultrapasse os dez romances.

Na realidade, quando Maria Barroso me falou de Saramago, eu tinha lido apenas um dos seus romances na tradução inglesa, A Jangada de Pedra, que se encontrava entre as minhas leituras de preparação para uma anterior visita a Portugal, devida a uma entrevista com o primeiro ministro português Cavaco Silva, a publicar no Al-Ahram.

Como um dos objetivos de Cavaco Silva, enquanto primeiro ministro, era a integração de Portugal na União Europeia, então Comunidade Econômica Europeia, estudei o assunto sob todos os ângulos, tentando familiarizar-me com as diferentes opiniões expressas pela sociedade portuguesa em relação à adesão de Portugal à CEE. Entre as posições mais contrárias à política do governo, estava a do escritor José Saramago, que expressara o seu ponto de vista em vários artigos e no seu soberbo romance, A Jangada de Pedra. É um romance único, para a defesa desta opinião. Porém, quando abordei o tema com José Saramago, ele precisou que o conteúdo da sua obra ia muito mais além, não se podendo dizer que tratasse desta questão em particular.

Na realidade a polêmica causada por A Jangada de Pedra, quando foi publicado em 1986, adveio essencialmente da posição clara que exprimia a propósito da adesão de Portugal à CEE. O romance inicia-se com um fenômeno estranho: um dos grandes rios que nasce em França, desaparece antes de chegar a território espanhol. Depois abre-se uma enorme fenda entre a Espanha e o resto da Europa. A falha alarga-se rapidamente de tal modo que a Península Ibérica se separa totalmente da Europa. Alguns dias depois, os habitantes da península, transformada em ilha, descobrem que esta começa a mover-se em direção ao oceano Atlântico, como se fosse uma jangada.

Rapidamente os habitantes se dão conta que a sua jangada de pedra se move para oeste, primeiro devagar, depois mais depressa, atingindo os cem quilômetros/hora. Os habitantes estão devastados pelo medo, receando o seu destino... Até descobrirem que o seu país flutuante chegou às praias da América latina. Este deslocamento da Península Ibérica simboliza a posição de Saramago, que recusa totalmente a adesão à CEE. O autor defende a proximidade de Portugal e Espanha com a América latina e a cultura hispano-portuguesa.

Ora Saramago tinha feito questão em assegurar, no decurso da nossa conversa um dia de Março pela tarde, que o seu romance não tratava realmente de uma jangada de pedra flutuando no oceano, sendo esse apenas o lugar onde se desenrolava a ação. O verdadeiro tema do livro, eram os habitantes da terra. Disse-me: «Os romances não tratam nunca dos sítios mas sim das personagens... As personagens deste romance estão estreitamente ligadas à cultura latino-americana, que emana de uma língua comum, de uma história comum e mesmo de um presente comum entre a Espanha, Portugal e os países da América latina».

Saramago pensa que estes laços estreitos não existem entre Portugal e os países europeus de origem anglo-saxônica, germânica e gaulesa, para além das diferentes origens dos estados da Europa de leste... Disse-me: «Toda a Europa tem necessidade de virar-se para sul. É necessário largar a nossa torre a norte e tratar com o Sul onde se encontra a maior parte dos países do Mundo».

Quanto aos habitantes da jangada flutuante de Saramago, fazemos notar, por exemplo, que os estrangeiros, tanto turistas como investidores, deixaram o país quando este se separou da Europa. E quando a jangada atingiu a América latina, já só restavam a bordo os indígenas, que saíram à rua dançando para expressar sua alegria.

Está presente neste romance aquela ironia amarga, célebre nos escritos de Saramago. Pois os países da CEE, que se tinham sempre oposto à adesão de Portugal, emitem um comunicado firme recusando a separação de Espanha e Portugal. A NATO também publica um comunicado confuso não se percebendo se é a favor ou contra; quanto à Inglaterra, fica muito feliz ao perceber que o estreito de Gibraltar, objecto de conflito com a Espanha, ficou no seu lugar, no Mediterrâneo, depois da separação da Península Ibérica. A partir de então, ninguém disputará o estreito à Grã-Bretanha.

Neste livro Saramago dirige-se também aos jovens europeus, já que muitos entre eles começaram a defender a separação de Espanha e de Portugal, provocando graves conflitos com as forças da ordem, que vêem nesta posição uma violação da política oficial dos Estados europeus.

Embora este romance seja o símbolo mais forte da oposição à adesão europeia, quando o seu autor obteve o Prêmio Nobel da literatura doze anos após a sua edição, Portugal não só tinha aderido à União, como estava entre os dez países fundadores da moeda única.

A posição de Saramago advém de opções políticas que fizeram dele membro do Partido Comunista português. Deste modo, Saramago tornou-se este ano o primeiro comunista laureado com o Prêmio Nobel.

Para aderir à CEE, Portugal teve que efectuar mudanças profundas na sua economia centralizada, de maneira a transformá-la numa economia de mercado como nos Estados capitalistas.

Quando encontrei Saramago, num dos cafés da capital portuguesa, a ideologia comunista acabava de desmoronar-se em todo o mundo e a União Soviética tinha entrado em processo de desmantelamento. Mas ele era ainda um comunista resistente. Lembro-me que, quando falei da queda do muro de Berlim ele respondeu: «As grandes ideias não são destruídas pela queda de algumas pedras, em Berlim ou noutro lado qualquer». Parece que o escritor português foi sempre da mesma opinião. A semana passada, quando o Prémio Nobel foi anunciado, o autor estava de partida de Frankfurt, onde tinha ido participar, no quadro da Feira Internacional do Livro, num colóquio intitulado: «Por que razão ainda sou comunista?»

José Saramago é um homem alto que perdeu a maior parte do cabelo ao longo dos seus 75 anos. Tem grandes óculos pousados no nariz. Fala francês com um claro sotaque português. Quando lhe perguntei: «Onde aprendeu francês?», respondeu: «Onde aprendi tudo, na rua!» [ ... ]

No ano em que encontrei Saramago, o escritor e a sua mulher deixaram definitivamente Portugal para se instalarem nas ilhas Canárias, no oceano Atlântico. Ele assegurou que não mudaria nunca de opinião nem que estivesse em desacordo com todos os homens do seu país. Quanto ao seu último romance traduzido, intitulado Ensaio sobre a cegueira, conta a história de uma sociedade atingida pela cegueira coletiva, exceto o herói que vê o que os outros não vêem.


Moamed Salmawy. Al-Ahram Hebdo, 28 de Outubro de 1998