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O escritor

P. Natural que uma entrevista consigo comece por uma pergunta que diz respeito à criação literária. Parece-me aliás uma indiscutível característica da sua escrita o estar sempre voltado para a sua arte, sobre ela manifestando-se directamente ou através das personagens. Coloco-me no lugar de um leitor comum, interessado, e expresso a minha curiosidade a respeito do início da sua carreira de escritor. Estreou como poeta, como tantos outros? Ou os primeiros textos publicados foram artigos em jornais e revistas, e de que espécie? E o que poderia dizer a respeito do seu primeiro romance, que parece desejar esquecer? Para além dessas informações gostaria que também explicasse o que o levou à criação literária. Lembro-me de tê-lo ouvido dizer que a considera tão importante quanto outra coisa qualquer. Penso que isso será verdade, no sentido de que qualquer actividade humana é digna e deve ser respeitada. O importante é o que cada sabe fazer e gosta de fazer. Que tem a dizer a tal respeito?

R. Carreira de escritor é uma expressão de que não gosto. Soa-me táctica, a estratégia, o cálculo, precisamente o contrário, tanto quanto posso ajuizar, do que tem sido a minha vida e o meu trabalho, até hoje. Comecei a escrever, isto é, a arrumar palavras num papel, muito cedo, aí pelos 16 ou 17 anos. Escrevia versos como todos os inquietos da minha idade, mas a distância entre isso e a poesia era, evidentemente, abissal. Nunca frequentei grupos literários, nem sequer de aspirantes a escritores, e os jornais e revistas pareciam, aos meus olhos, fortalezas inexpugnáveis onde só se poderia entrar mediante alguém que de dentro abrisse a porta. Entende-se assim que eu tenha aparecido de repente, sem anúncio, se a ajuda do treino de escrita que pode resultar duma colaboração assídua na imprensa. Vim do nada para logo regressar ao nada. Depois de Terra do pecado, primeiro livro que publiquei, estive quase vinte anos sem aparecer, não contanto a ocasional publicação de um ou outro texto, pequenos contos sem importância, cujo único interesse é o de fazer parte de uma história.

Não é verdade que eu deseje fazer esquecer esse livro que deveria chamar-se A viúva, como o baptizei. Talvez certa animadiversão minha para com o que foi, queira-o eu ou não, a minha “estreia literária”, resulte do facto de não ter sabido defender “meu” título e ceder à proposta, no fundo bem-intencionada, que o editor fez de modificá-lo. São águas passadas que ainda moem. Se não incluo esse livro na minha bibliografia, é simplesmente porque ele foi escrito por outra pessoa, melhor ainda, por alguém que ainda estava a caminho de ser pessoa. Não o renego, apenas o deixo ficar lá onde está, quase na adolescência, no limiar da experiência e da vida.

Suponho que nenhum escritor poderá dizer, com a exactidão, o que o levou à criação literária. Um certo gosto, uma certa necessidade de narrar-se narrando, um certo narcisismo, uma certa consciência da precariedade da vida, um certo desejo de ficar na memória dos outros – tudo isto, e certamente muito mais, pode levar a escrever. Mas, se calhar, a grande, a verdadeira razão traduz-se nestas poucas e simples palavras: “Se os outros o fizeram, por que não eu?”

O tradutor

P. Considerando as fichas que sob o seu nome existem na Biblioteca Nacional de Lisboa, verifiquei que se dedicou à tradução por muitos e muitos anos. Terá sido levado a isso por inúmeras razões, inclusive por constituir-se num ganha-pão. Examinando um pouco os livros que traduziu, pude concluir o seu bom conhecimento de algumas línguas estrangeiras: francês e inglês especialmente, mas também alemão, quem sabe alguma língua eslava. Algumas vezes não teve acesso ao original e fez a sua tradução a partir de outra tradução, parece-me. Acho importante ter informações sobre isso, porque a meu ver o conhecimento da língua é por si só uma convivência com a cultura de um povo, a partilha de uma específica visão do homem e do mundo. Além disso, preciso é considerar, julgo eu, até que ponto essas obras influíram sobre o seu pensamento, a sua posição ideológica, as suas concepções de arte e de literatura. Traduzir um livro é recriá-lo, é conviver intimamente com outro escritor, seus pensamentos e afectos, filtrados na obra. Outra observação ainda: não é tradutor de poesia, somente de romances, obras políticas e ideológicas, livros de História e História da Arte, etc. Mais uma observação: examinando os anos em que mais se dedicou à tradução, verifico – sempre tendo por base os livros que se encontram na Biblioteca Nacional – que em determinados períodos a sua actividade de tradutor atingiu índices elevadíssimos: 1959, ou a década de 70, em especial 1979: dez livros! Haveria uma explicação para isso? Das obras traduzidas, qual a que mais o marcou?

R. Concluiu mal. Não convém julgar pelas aparências. Os livros que traduzi podia m ter distintas origens linguísticas, mas a língua a partir da qual as traduções foram feitas era sempre a mesma: o francês. Sou, portanto, “responsável” de algumas traições de sentido e de estilo, em todo o caso não mais responsável do que outros, uma vez que a tradução foi prática corrente em Portugal. Hoje, menos, mas ainda se usa, tanto quanto creio saber.

Traduzi por necessidade, não por gosto. Traduzi o que os editores tinham para dar-me em cada ocasião. Só assim se entende a diversidade de tipos de livros que me passaram pelas mãos. Nunca me propuseram traduzir poesia, nem eu aceitaria, não porque não me julgasse capaz, mas porque o tempo que esse trabalho iria exigir-me não encontraria compensação no que me pagassem por ele. Durante alguns anos a tradução foi, para mim, o modo de melhorar um pouco o salário, durante outros – entre 1976 e 1980, quando estive desempregado, e antes de poder começar a viver do que escrevia – o meu único ganha-pão.

Tendo em conta as circunstâncias e as condições em que decorreu esta minha actividade de tradutor, não poderia esperar que algo – temas, estilo – se transmitisse ou transferisse para o que se preparava para ser ou já estava sendo o meu próprio trabalho de escritor. O tradutor que fui limitou-se a cumprir uma obrigação com limpeza e honestidade, o escritor tentava descobrir um caminho que lhe pertencesse. Não tive de fazer qualquer esforço para repelir influências. Na verdade, sou muito pouco influenciável. Permeável, sim, mas minha permeabilidade não se resolve em imitação ou na adopção de processos e estilos de escola. Sou permeável, mas sem alteração sensível das matérias que me constituem.

Que obra me marcou mais? Acho que foi Civilização grega de André Bonnard.

A memória de outros textos

P. A sua ficção tem como uma das suas mais evidentes características a intertextualidade. Isso prova que o Saramago é um apaixonado leitor e, também, que é um dotado de uma excelente memória. Pode-se, a meu ver, acrescentar mais uma consequência: os textos, ou as lembranças deles, afloram nos seus romances, em especial dos derivados de obras de literatura portuguesa: poesia, ficção em prosa, obras de História, etc. Constitui tal facto uma prova, ao lado de tantas outras, do seu entranhado amor às coisas de Portugal. O ano da morte de Ricardo Reis é uma teia de lembranças literárias de toda a sorte, portuguesas ou não-portuguesas, aliás. Acrescente-se a isso as constantes ressonâncias bíblicas. Como as explica? Quais as obras que mais o marcaram? Todas as que considera fundamentais para a formação do seu espírito estão presentes na sua memória e nos seus textos?

R. Fui um apaixonado leitor, sem dúvida, hoje muito menos. Não escapo à regra de que a partir de certa idade se encontra mais prazer na releitura do que na leitura propriamente. De gente como nós, que vivemos entre livros, poder-se-á dizer que somos feitos de papel. Não se dirá isso de um camponês ou de um mineiro. Antes de se ter inventado o conceito de intertextualidade, já todos éramos, os da tribu literária intertextuais. A memória do vivido une-se, de um modo inextricável, à memória do lido. (Aliás, parece obvio que o ler não decorre à margem do viver.) No meu caso, no momento em que me ponho a escrever sinto-me totalmente convocado, sou uma certa pessoa, inteira, que não separa a experiência da leitura da experiência da vida, que via utilizar uma e outra sem estabelecer hierarquias nem prioridades. O livro em tempos lido, há um ano ou há cinquenta anos, toma o seu lugar na cadeia de experiências múltiplas de que se compõe uma vida – esta. E provavelmente porque o tomo assim, é que me vejo tão pouco sensível às chamadas “influências literárias”: um livro de um grande autor é, apenas (será preciso dizer que esta palavra, aqui, não é redutora?), um momento da minha vida. Ressonâncias bíblicas? Sem dúvida. A Bíblia é um livro, é só um livro, e essa é a sua grandeza. Como o Corão, como o Vedanta, obras de seres humanos, feitas com a carne, o sangue e os sentidos dos seres humanos, momentos, uns e outros, os livros e as pessoas, da minha própria vida.

O homem do Ribatejo

P. Alguém disse, de Eça de Queiroz, que o Crime do padre Amaro fora um romance que ele trouxera no ventre. De certa forma, penso que Levantado do chão representa, na sua produção romanesca, função equivalente. Há nele algo de vital que transbordou de si e se encarnou nesse seu primeiro grande romance. Nas páginas de Levantado do chão pulsa a força da natureza, aquela paisagem que antecede o próprio ser humano; há um amor quase carnal pela terra e pela gente que a trabalha, uma indignação contra as injustiças e as opressões, indignação – diga-se – que muitas vezes se extravasa em sarcasmo, em humor ou subversiva ironia. Será, apenas impressão minha, ou a sua experiência de vida, a sua infância e adolescência próximas ao campo, aparecem transfiguradas nesse romance? Encarnam-se ou não nas paisagens e gente alentejanas, naturais embora do Ribatejo? Lembro algumas crónicas, em que recorda directamente a avó e o avô. No romance as experiências e lembranças sofreram alguma transformação, é claro, no acto de criação. Mas de alguma forma estão presentes e isso poderia explicar a autenticidade e força do texto? Estarei enganada?

R. Se eu não tivesse nascido naquelas paragens, se não tivesse crescido em contacto com a terra e a gente que dela vive, com todas as suas belezas e servidões – Levantado do chão não existiria. Ou existiria doutra maneira. O que haja de verdade pungente nesse livro, se diretamente o recebeu do Alentejo e dos alentejanos, recebeu-o também dos meus anos de infância e adolescência na aldeia. Devo no entanto esclarecer que nenhum das personagens do romance quis eu que fosse retrato das pessoas – parentes ou conhecidos – que me ficaram na memória nesse tempo. O que haja de Ribatejo meu no Alentejo de Levantado do chão não se traduziu em atmosferas, experiências ou imagens levadas de um lado para outro pela lembrança: não há nada que eu narre no romance que tenha sido vivido, tal e qual, por mim ou por outrem, nos campos de Azinhaga. O que há lá é outra coisa, essa que permitiria que uma oliveira transplantada do quintal dos meus avós para o quintal dos Mau-Tempo pudesse vingar e dará fruto: o trabalho da terra nas raízes, o trabalho da lavra e da ceifa, o esforço e a dor do esforço, o labor pesado e a paga pobre. Não direi que andei cinquenta anos com esse livro no ventre, mas talvez possa, hoje, dizer que o Levantado do chão começou a ser escrito muito cedo, quando eu ainda mal sabia ler. Curiosamente, quando pensei escrever um romance sobra a vida do campo, comecei por imaginá-lo localizado na minha aldeia, mas logo pus a ideia de parte, precisamente para não cair na tentação de usar os registos da memória, com o seu valor próprio, como plataforma da ficção. Quis estar, ao mesmo tempo, perto e longe de mim. O mais que pudesse.
Portugal e Europa

P. Sei que a questão da integração de Portugal na Europa muito o inquieta. Dela tratou num romance, A jangada de pedra, mas continua a abordá-la em conferências, depoimentos, artigos. A europeização de Portugal parece significar para si a sua sucessão do mundo centro e sul-americano. Além disso acha que ela foi decidida sem suficiente informação e, portanto, irá concretizar-se sem o necessário conhecimento e consentimento de milhões e milhões de pessoas que, entretanto, estão directamente envolvidas na questão. Gostaria que mais uma vez expusesse o seu pensamento a tal respeito, sobretudo porque A jangada de pedra pareceu  a muitos ser um romance a respeito de uma questão pontual, que teria uma solução definitiva a partir de 1992. No romance teria exposto a sua opinião sobre o assunto e pronto. Todavia, a meu ver e no de muitos, é um problema que ainda muito o preocupa. Comunidades com um passado, uma língua e uma cultura próprias não podem e não vão desaparecer, submergidas numa Europa hipotética. Todavia, face ao gigante norte-americano, não deveria ela unir-se para não ser dominada? Pelo menos economicamente? Nos últimos programas da TV francesa a que tenho assistido, vejo ali uma presença cada vez maior dos Estados Unidos. Os cineastas e produtores de programas de TV da França estão assustados com a invasão estrangeira, reconhecendo embora que são de melhor qualidade e despertam mais interesse. Os números – prémios de concursos, vendas disso ou daqui, volume de negócios, etc. – são sempre calculados em dólares (até parece o Brasil e demais países da América do Sul, com a economia fortemente dolarizada). A todo o momento são entrevistados actores (nas vésperas do lançamento de algum filme), autores, cantores norte-americanos, etc., etc. Se a França não consegue enfrentar com tranquilidade a crescente presença norte-americana, até na sua vida cultural, isso não constitui um alerta a favor da união dos europeus?

R. Com todo o respeito, parece-me que a expressão “europeização de Portugal” não tem qualquer sentido, ou tem-no tanto como seria, por exemplo, dizermos “portugalização de Lisboa”... Em primeiro lugar, haveria que definir essa escorregadia figura denominada Europa, e não só defini-la, também identificar os seus caracteres distintivos, em ordem a transferir e replantar em Portugal só aqueles que, sem nenhuma espécie de dúvida, fossem já intrinsecamente “europeus”, sem mistura de quaisquer outros que revelassem de características nacionais de alguns ou de todos os países que, nos mapas, com fronteiras mais ou menos flutuantes, integram o espaço de três dimensões (a terceira é a História) que leva o nome de Europa. O que fica dito não é um mero e gratuito jogo de palavras. Quando nos referimos a um “mundo americanizado”, sabemos, com grande aproximação, do que estamos falando: sabemo-lo tanto que não é preciso explicá-lo aqui. Mas se é de “europeizar Portugal” que se trata, então há umas quantas questões prévias a que teríamos de responder antes de seguirmos adiante. Por exemplo: Todos os outros países da Europa já estão nesta altura “europeizados”? Quem, como e quando os “europeizaram”? Segundo que modelo? A França está mais “europeizada” do que a Alemanha? Ou será o contrário? Na Itália, o Norte é mais “europeu” do que o Sul? E em Portugal, que partes, que regiões, que classes, que atividades, que profissões respondem, pelo que fazem e pelo que pensam, a esse conceito de “europeização”, afinal tão escorregadio como a própria Europa?

Por outro lado, que é isso de “unir-se a Europa” para não ser dominada? Por que não nos perguntamos antes como, para que fins e quem vai, na Europa, dominar a Europa? Eu entenderia e aprovaria uma Europa unida na igualdade de direitos e de deveres de seus cidadãos, atenta ao trabalho, à saúde, à educação, à cultura, à qualidade de vida – a tudo o que, numa palavra, não sendo, só por si, felicidade, poderia ajudar a encontrar-lhe o caminho. O que eu não posso entender é uma Europa onde o efeito mais visível da reordenação económica e da redistribuição das capacidades e competências produtivas em curso é uma imensa multidão de 18 milhões de desempregados.

Em perspicácia, agudeza e sentido “profético” não me distingo de qualquer pessoa comum, que isso mesmo sou mas algo em mim, desde há tempos, me anda a insinuar, que o que está a preparar-se e a estruturar-se na Europa, sem demasiados mortos e feridos (salvo os de guerras localizadas e controladas, como na ex-Jugoslávia e alguma outra que convenha fazer surgir) – é, nem mais nem menos, um Império. Não sei se vai chamar assim, com certeza, mas reger-se-á por leis imperiais que servirão antigas e recorrentes ambições imperiais. Que cabeça terá esse império? Já foi decidido que as ideologias morreram. Decretar-se-á também a morte das filosofias. Talvez com o nascimento da União Europeia tenham os europeus começado a morrer.

Um mundo plural

P. Vivemos num tempo – ou sempre terá sido assim? – marcado por contradições. A humanidade parece querer celebrar uniões, como a Comunidade Europeia, ou, pelo menos a nível económico, o tratado entre Estados Unidos, Canadá e México; ou, no cone sul, o Mercosul, com os países da América do Sul. Ao mesmo tempo assiste-se a movimentos nacionalistas emergentes, de que são exemplos os da Península Ibérica. Gostaria de saber qual é o seu pensamento a respeito por exemplo dos bascos ou dos catalães. Considera desejável a sua integração numa unidade mais ampla, preservando-se a sua identidade cultural? Considera que seria interessante e possível uma pluralidade de grupos nacionais numa unidade maior, quem sabe uma federação? Isso seria possível dentro da Europa que se está a delinear? Portugal caberia numa tal federação?

R. Não se pode pedir a um simples escritor que seja, ao mesmo tempo, historiador de um passado que não viveu, observador de um presente que muitas vezes não logra entender e vaticinador de um futuro que não tem meios para imaginar. Se tanto se lhe pede, então não se estranhe que erre em tudo...

Apetece dizer que sucede com as “contradições” o mesmo que tem sucedido com a “cultura”. De tanto se dizer que “tudo é cultura”, quase acabou por se perder, na comunicação e na prática, o sentido da relatividade de valores dos diferentes actos e produtos culturais. Também ao afirmar que “tudo são contradições”, como que ficamos à espera que nos dispensem da obrigação de as identificar e analisar. Está à vista que vivemos num mundo em que coabitam e muitas vezes se confundem duas tendências organizativas de sociedade principais: uma, evidente, que é a globalização; outra, difusa, que é a pulverização. Em geral, as afirmações de identidade e as reivindicações de tipo nacionalista têm vindo de grupos étnicos e linguísticos caracterizados, quando não de bem definidas nacionalidades, que a história de uma maneira ou outra submergiu. Perguntar-se-á como se explica que num mundo que avança para a formação de gigantescos conjuntos económicos, estrategicamente concebidos e dotados de meios de captação e aliciação de massa inimagináveis ainda há poucos anos, tenha surgido este súbito apetite de afirmação própria, particular, que tem feito estalar e fragmentar-se nações que pareciam consolidadas, harmonicamente articuladas nas suas partes pela convivência e interdependência dos cidadãos. A esta pergunta responderei com outra: se está claro que o indivíduo se “libertou” (entendendo como factores de libertação os distintos e conhecidos movimentos de contestação dos últimos trinta anos), como se poderia imaginar que o “prazer” pessoal resultante da afirmação duma determinada diferença não iria ser absorvido, reelaborado e, mais tarde ou mais cedo, reivindicado pela consciência colectiva?

O problema dos bascos ou dos catalães em relação a Espanha não é muito diferente do que certamente virá a ser o problema da Espanha em relação à Europa. E quem diz Espanha, dirá Portugal. Esta nossa Europa, sendo, num extremo, um macro-projecto federativo que já não se disfarca, e no outro a micro-reivindicação sucessiva de minorias étnicas, religiosas, linguísticas, culturais, assemelha-se a um conjunto de caixas chinesas: a primeira é a única visível, mas lá de dentro, quando a movemos, vem o rumor abafado doutras presenças: Ignorá-las seria um erro terrível.

O problema das minorias

P. Ainda dentro da questão dos nacionalismos e da sobrevivência de minorias dentro de comunidades poderosas, qual lhe parece ser a solução para problemas como o dos negros nos Estados Unidos, ou das minorias índias em alguns países americanos, ou dos contingentes religiosos e raciais e culturais da antiga Jugoslávia? Na sua História do cerco de Lisboa, a oposição entre mouros muçulmanos e godos cristãos é dirimida pela luta armada. Uma solução que parece não aprovar. O almuadem é visto com a maior simpatia e a sua morte é um assassinato, diria selvagem. Penso nas minorias constituídas pelos descendentes dos escravos africanos dentro do mundo dos brancos, nos Estados Unidos. Alguns, como Malcolm X, optaram pela rejeição completa dos brancos, almejando a conquista de território onde os negros pudessem desenvolver-se livremente, conforme as suas normas, fora dos padrões impostos pelos brancos. Já Luther King preferia a convivência, aceitando os valores da maioria branca, lutando apenas pela igualdade de direitos que possibilitariam a ascensão socioeconómica dos africanos. Ambos morreram assassinados. Por africanos dominados por outras ideias? Pelos brancos? Há esperanças de sobrevivência para as minorias? Quase sempre a religião é um elemento a mais a justificar as divergências, não é o único. Malcolm X converteu-se ao islamismo, a religião que não era a dos brancos norte-americanos. Luther King permaneceu cristão.

R. Se eu tivesse soluções, iria sofrer o desgosto de ver que ninguém lhes faria caso... Felizmente para o meu amor-próprio, não as tenho. Está demonstrado pela experiência histórica em todos os tempos lugares que enquanto um ser humano não reconhecer a sua própria humanidade noutro ser humano, a questão das minorias continuará a ser o que sempre tem sido: o domínio duma parte maior sobre uma parte menor, o esforço da parte menor para sobreviver às consequências desse domínio. Neste quadro praticamente imutável, as religiões, contradizendo a etimologia, têm servido, não para re-ligar, mas para des-ligar. Não duvido que qualquer crente se sinta, pela religião que professa, ligado  a Deus e ao universo, mas essa mesma religião é o que impede, quando não simplesmente o proíbe, de ligar-se a quem siga uma religião diferente. Não é a ideia de Deus que é absurda, o absurdo está em fazer dessa ideia uma espécie de código penal. Apetece dizer que se é verdade que a crueldade humana nunca precisou de pretextos ou motivos para manifestar-se, não é menos verdade que as religiões lhos têm proporcionado todos. Vivemos no tempo da hipocrisia: ao mesmo tempo que vamos defendendo o direito de cada um a ser diferente no plano dos costumes, procedemos, directa ou indirectamente, à redução violenta das diferenças quando elas se manifestam como expressões de uma etnia, de uma religião, de uma cultura. Há culturas que estão a extinguir, não porque se tivesse esgotado o tempo da sua necessidade histórica, mas porque estão sendo assassinadas. E isto não pode ser reduzido a uma questão do tipo brancos versus pretos, o que eu chamaria de opostos simples. O poder não tem cor. Aliás, quem sabe se a verdadeira questão, aquela de que todas as outras se alimentam e lhes server de máscara, não será, não uma questão de minorias, mas a questão da maioria? Quero dizer, uma maioria de pobres de todas as cores e religiões economicamente gerida por uma minoria de ricos de todas as religiões e cores...

A questão feminina

P. Começo por uma afirmação que, hoje em dia, é já um cliché: a mulher tem sido milenarmente oprimida e cerceada. Todavia, ela tem um grande espaço na sua ficção. Lembremo-nos de uma Blimunda ou de uma Lídia. E quando digo espaço, não estou a referir-me somente à sua presença quantitativamente importante, ou à sua função primordial nos seus romances. Quero referir-me àquela espécie de veneração que a cerca na sua ficção. Chega a dizer que é a mulher que leva o mundo para a frente. Há – ou pelo menos havia até há pouco – uma inegável reverência pela mulher. Quando ouço certos pronunciamentos das suas personagens femininas, parece-me ouvir a voz de Beatriz, a amada de Dante, tão presente nos seus versos. Não a Beatriz que viveu em Florença, se casou, morreu jovem, etc. Mas aquela que encarnou para Dante o eterno feminino. Damaso Alonso, num dos seus mais belos ensaios incluídos em Poesia espanhola, conta-nos da sua convivência por anos e anos com um dos sonetos dantescos a ela dedicados, onde encontrou materializado em versos o seu sonho inspirador. Assim Blimunda, por exemplo, que parece vinda de um mundo outro, superior, melhor, e que por isso mesmo é capaz de enfrentar o nosso pequeno e mesquinho mundo de todos os dias. Como explica essa visão da mulher? O que o levou a dela fazer esse conceito, apenas a sua imaginação criadora? Numa sociedade como a portuguesa, que até há bem pouco tempo era tão fechada para a mulher – em que o homem era o centro de todas as atenções, e a mulher a serva passiva e submissa, no geral – o que contribuiu para que formasse um outro conceito? Seria a sua inclinação para ver o mundo a partir de perspectivas diferentes das de toda a gente?

R. Não gostaria nada de que a minha atitude perante as mulheres, tanto as de carne e osso como as que vão aparecendo nas histórias que conto, fosse de veneração, no sentido quase religioso em que a palavra muitas vezes é usada. Deveríamos, isso sim, falar de respeito, do simples e humano respeito. Quando diz que “havia [em mim] até há pouco uma inegável reverência pela mulher”, tenho de confessar a minha preocupação. Por que “até a pouco”? Em que livro, em que situação, perdi eu o respeito ao género feminino em geral, e às personagens femininas em particular, antes, pelos vistos, tão notório? Quando foi que as tratei mal ou injustamente? De todo o modo, quero deixar claro que não me entusiasmam nada certos lugares-comuns como “o eterno feminino” ou “sonho inspirador”, que mais me parecem reflexos “marianos”. Na verdade, as mulheres são muito mais sensatas: nunca fizeram do homem um “sonho inspirador” nem falaram do “eterno masculino”. Em criança e quando rapaz, até ao princípio da adolescência, vivi muito mais entre mulheres (mãe, avó, tias, vizinhas) do que com o lado masculino desse meu mundo. Encontrei nelas um sentido crítico instintivo, como que uma risonha compaixão, uma benevolência paciente, cada vez que falavam dos homens. Talvez isto me tenha elevado, depois, a não tomar demasiado a sério a autoridade e a suficiência masculinas, e, por contraste, a compreender melhor esse ser outro que é a mulher. Atenção, digo talvez. Na verdade, um homem, qualquer homem, é também para mim um ser outro. A diferença está, talvez, em ser esse homem como outro país de um continente que é o meu, enquanto a mulher está sempre do outro lado mar...

A língua portuguesa

P. Como vê a questão da língua portuguesa a nível mundial? Seria interessante ter ideia do número de exemplares dos seus romances vendidos no mundo de língua portuguesa e fora dele; e, ainda, mais especificamente, quantos exemplares do romance X foram vendidos em Portugal, no Brasil, em cada um dos países de expressão portuguesa. Ou seja: qual a sua recepção dentro e fora da língua portuguesa? Talvez o aspecto mais importante desta questão tenha a ver com os países africanos que usam o português, alguns tendo nele a língua comum que lhes permite a vida em comunidade, embora constituídos por grupos de língua e cultura diferentes. Nesse caso o português, como o inglês, é o instrumento que lhes permite a comunicação. Às vezes assustam-me certos depoimentos, em congressos e reuniões congéneres sobre a língua portuguesa, por um certo ranço imperialista. Esses povos falarão o português – e quererão aprendê-lo, ler as suas produções literárias, etc. – se essa língua for por eles assumida como própria e, nesse sentido, o seu ensino e divulgação devem ser favorecidos.

R. Não tenho a menor ideia do número de exemplares dos meus livros vendidos fora do âmbito da língua portuguesa. Nunca me dei ao trabalho de averiguar. Quanto a Portugal e Brasil, julgo, por informação dos editores, que já terá passado de um milhão. Sobre a questão dos “imperialismos linguísticos”, é certo que não faltam em Portugal atitudes como as que aponta: trata-se de falsas excitações patrióticas que se esgotam na sua própria enunciação. Mais grave para o futuro da língua me parece a acção de alguns ardorosos brasileiros que se insurgem contra um suposto “colonialismo linguístico”, inexistente em todos os aspectos, da parte de Portugal, e reclamam para a língua que falam e em que escrevem um estatuto de “brasilidade” onde não é difícil descobrir sinais de uma “xenofobia” orientada. Se Portugal e Brasil fossem capazes de trabalhar juntos no ensino e difusão da língua portuguesa, particularmente no mundo africano, poderíamos esperar para ela um futuro próspero. Assim, cada qual por seu lado, os Portugueses a ensinarem “português”, os Brasileiros a ensinarem “brasileiro”, pergunto-me se o resultado, considerados também outros factores influentes, não será acabarem os africanos por escolher o inglês para língua de comunicação. Esse seria só o primeiro estádio: o segundo, inevitável, seria tornar-se o inglês rapidamente em língua de cultura. A História da Língua Portuguesa está a ser acrescentada com um novo capítulo a que poderemos chamar “A Oportunidade Perdida”.

O maravilhoso

P. Ainda não falámos de uma característica importante da sua ficção: a intervenção do maravilhoso. A partir do Memorial do convento, factos insólitos e personagens dotadas de poderes extraordinários começam a intervir na sua ficção. Temos Blimunda e seus olhos capazes de ver as pessoas por dentro; Ricardo Reis, ficção de Pessoa a conviver em Lisboa com o seu criador, já falecido; são as várias personagens de A jangada de pedra. E assim por diante. Tal dimensão está ausente de Levantado do chão e História do cerco de Lisboa. É a intervenção do maravilhoso dentro de um mundo narrado a partir de um óptica realista que de me faz pensar na ficção latino-americana contemporânea, que também mistura realismo e magia. Na vida, na verdade, há coisas inexplicáveis. Por mais objetivos que queiramos ser, há momentos em que guardamos silêncio por falta de ter o que dizer. Pessoalmente prefiro sempre acreditar que há alguma razão passível de explicar o que aparentemente é inexplicável, e que desconheço. Ou que ainda não está ao alcance da ciência. Mas a verdade é que o mundo nos parece com pessoas que possuem dons ditos para-normais, acontecem factos insólitos, etc. Ao usar o maravilhoso, pretendeu que ele convivesse naturalmente com a rotina banal de todos os dias, justamente para mostrar a vida que vivemos tal qual? Ou assistem outras razões para explicar a presença do maravilhoso? Em A jangada de pedra tem sua razão de ser, uma vez que se trata de uma alegoria. Mas, e nos outros romances?

R. Creio que vai sendo tempo de rever umas quantas ideias feitas sobre o que se tem denominado “realismo mágico” ou “real maravilhoso” na ficção latino-americana contemporânea. Não para lhos negar, evidentemente, mas para distinguir neles o que haja de inovação autêntica e o que é aproveitamento e reelaboração de temas e visões provenientes doutras regiões literárias. Escusado será dizer que não pretendo (por absoluta falta de competência) pôr mãos nesse trabalho. Lembro, em todo o caso, que não faltam nas literaturas europeias exemplos de escritores que sendo considerados, com maior ou menor propriedade do termo, realistas, também percorrem em algum momento da sua vida os caminhos do maravilhoso. Realista, e mesmo naturalista, foi Maupassant, e escreveu Le Horla. De Prosas bárbaras, de Eça de Queiroz, apetece-me dizer que pode ser lido como um compêndio de temas do maravilhoso para uso de autores em crise de imaginação. O maravilhoso é coisa velha: realistas, e maravilhosos também são, a Ilíada e a Odisseia. No que a mim respeita (pedindo desculpa de entrar na fila logo a seguir a Homero...), recordo um brevíssimo conto – A morte de Julião – publicado nos longes de 1948, onde já o maravilhoso dilui um acto de suicídio consumado. Atrevo-me mesmo a pensar que essa dimensão do olhar literário nunca esteve inteiramente ausente do meu trabalho. Mesmo nos livros que cita como excepções. Levantado do chão não poderia ter sido escrito sem o pressentimento do “real sobrenatural” (este rótulo, que acabo de inventar, serve tão bem como qualquer outro) e História do cerco de Lisboa, com os seus distintos níveis sedimentares de leitura e as suas transmigrações de factos históricos, não é entendível de um ponto de vista estreitamente realista. E que direi das crónicas reunidas em Deste mundo e do outro e A bagagem do viajante? Não é que eu queira ser “maravilhoso” à força, para aproveitar a maré, simplesmente me parece que a literatura não pode respirar fora dessa quarta dimensão que é a imaginação livre. Para ser ainda mais claro: custa-me tanto a compreender, para dar só este exemplo, um surrealista que não seja realista, como um realista que não seja surrealista... Ecletismo topa-a-tudo? Nada disso. Apenas uma visão circular do mundo.

Escritor materialista

P. Repetidamente tem-se afirmado materialista. Certa vez disse mesmo que era “um materialista canónico”, embora não tenha uma visão redutora. Pode privilegiar uma janela, sem excluir outras. Por isso a sua rejeição absoluta da intolerância, sob qualquer forma que se apresente. As ideias a respeito da hipocrisia e intolerância do catolicismo que permeia os seus romances, em especial Levantado do chão e Memorial do convento, muito presentes nas suas demais intervenções, têm fundamentos históricos, além de reflectirem a sua própria experiência. A intolerância parece estar a tornar-se uma terrível marca deste nosso fim de século e de milénio. Acrescentem-se as razoes que o levaram a uma espécie de voluntário exílio. Tudo isso junto explica a sua indignação perante as manifestações de intolerância. Por outro lado, sendo materialista, considero-o um homem religioso, no sentido mais amplo da palavra, no sentido etimológico mais comumente aceite. Se religião é o processo que conduz o homem a Deus, o Saramago procura aproximar-se do seu semelhante, esforça-se por re-ligar o homem com o outro. E faz isto com fervor e paixão. Nesse sentido é que, para mim, é um humanista. Humanista no conceito de Focillon, baseado não nas heranças clássicas, porém na vida. É um homem atento ao outro, um homem defensor do seu semelhante. Pergunto-lhe se esse outro jamais poderia ser um católico? Recordo não a Igreja institucional, mas certas vivências católicas actuais. Penso por exemplo no trabalho executado junto aos índios da Guatemala no México, de formação para a luta e reinvindicações, e de apoio quando necessário. Veja-se o caso recente dos índios Chiapas, discriminados e despojados de sua própria terra. Tiveram o incentivo e amparo do bispo de San Cristobal, Mons. Ruiz e seus catequistas – apesar da desaprovação de Roma, que queria o seu afastamento. Receio que uma incompreensão global tenha como consequência uma injustiça. Como se vê, esta questão comporta uma pluralidade de perguntas, mas tal facto talvez facilite a resposta.

R. É verdade que este que sou nunca poderia ser católico, como também não poderia seguir qualquer outra religião, e menos ainda a que chamamos “reveladas”. Para mim não tem nenhum sentido que a “palavra de Deus” tivesse podido passar por uma boa humana, numa determinada língua, servindo-se de um vocabulário contingente, determinado este por circunstâncias apenas humanas. Como igualmente não tem sentido afirmar-se que o Espírito Santo inspira as decisões do papa e dos concílios. Digo e repito que o lugar da transcendência é, tão-só, o imanentíssimo cérebro humano. Deus não mais realidade que a minha Blimunda, são ficções um e outro. Para tomar o exemplo dado, faço aos católicos que ajudaram os índios de Chiapas a justiça de pensar que o fizeram, não por serem católicos, mas simplesmente porque, acreditavam saber onde se encontrava  a justiça. Valoriza, como se faz, “certas vivências católicas actuais”, apenas desacredita os católicos, na medida em que essas vivências são apresentadas como algo fora do comum, excepcional, inesperado, surpreendente: o que de facto se está a dizer é que de um católico não se esperavam semelhantes comportamentos... Ou será menos valiosa a abnegação de um laico, por ser laico? Ser católico já é meio caminho andado para entrar no céu?

O exilado

P. Li a sua entrevista recente para um jornal do Brasil, em que expunha as razoes que o levaram a afastar-se de Portugal, indo viver nas Canárias. Para um homem tão ligado à sua terra, como o Saramago, não será esse voluntário exílio um castigo que o atinge mais que a qualquer outra pessoa? A escrita de um diário não tem um pouco a ver com isso? Sei que tal exílio terá suas vantagens, inclusive permite-lhe ter a sua vida particular liberta de curiosidades, pode trabalhar com mais sossego sem ser alvo de mil solicitações, etc. Mas a situação que se criou à sua volta, de mesquinhez e intolerância, exigia um exílio não-português?

R. Nem fui exilado, nem me exilei. Mudei simplesmente de casa, como pode suceder a qualquer pessoa quando a vizinhança se lhe torna insuportável. Não me retirei de Portugal, retirei-me da convivência com a mentalidade pseudodemocrática que se instalou no País com a chegada do Partido Social Democrata no poder. O Portugal em que me reconheço está em Lanzarote, na minha biblioteca, está também no espírito daqueles a quem estimo e respeito e que em Portugal continuam. Não menos português por viver fora de Portugal.


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*Entrevista realizada em 1994 e incluída em Ler Saramago: o romance.